- As nossas suspeitas estavam certas, Amira.
Olhava com pormenor para os lábios de quem à minha frente se deparava. Estavam secos, ele precisava de beber mais água. O meu nome soou-me estranho vindo da boca deste conceituado Médico Especialista do IPO de Lisboa. Quem era esta Amira de quem ele falava? A Amira que eu conhecia não tinha cancro, e muito menos poucos meses de vida.
- O que é que me está a dizer, Doutor? Não sei se percebi bem...
- Eu sei que este é um momento de choque, esperávamos pelo melhor, como com qualquer outro doente, mas infelizmente não tenho boas notícias para te dar.
Doente. Eu estava doente. Não, não pode ser verdade.
O calor escapou das minhas mãos, sentia-as frias, muito frias. Esfreguei uma na outra, numa tentativa inútil de as sentir novamente.
- Pode repetir, por favor? Mas mais devagar...
O médico suspirou profunda e lentamente. Eu era mais uma daquelas que entrava em negação. As tonturas tinham começado de novo. Vinham num mau momento, o chão girava aos meus pés.
- Amira, tu tens um Glioblastoma Multiforme tipo IV no hemisfério esquerdo do teu cérebro. Como sabes, o prognóstico não é muito favorável. Ainda é de pequenas dimensões, mas o crescimento é simplesmente demasiado rápido para podermos operar. Chegaste a nós já com sintomas de danos neurológicos e, infelizmente, tudo o que podemos fazer por ti é Quimioterapia Paliativa, ou seja, tentar atrasar o crescimento do tumor.
Sintomas. Malditos sintomas. Tinha ficado melhor na ignorância. Tudo o que eu tinha sentido nos últimos meses eram um par de enxaquecas e umas náuseas aqui e ali, que sempre associei ao meu vício pelo trabalho e a exaustão que sentia. Procurei na altura o meu médico de família, achando que precisava de um suplemento multivitamínico. Quem diria.
- Não, eu acho que não quero isso. O cabelo ia-me cair todo e eu nem sequer podia trabalhar, toda a gente ia saber... Não quero quimio! Tenho quanto tempo, Doutor?
- Amira, eu não aconselho ires trabalhar, o hospital vai ser informado e podes ficar em baixa médica. Tens agora é que estar com a tua família!
Eu estava a ouvir, mas não escutava uma única palavra. A única que me invadia a mente à força era a palavra CANCRO. Eu tinha cancro...
- Quanto... tempo.., Doutor?
Precisava de saber, precisava de viver a minha vida! Eu não tinha feito absolutamente nada dela... Tinha dedicado tudo à minha formação e agora, pela primeira vez, arrependia-me plenamente. Eu nunca tinha tido um namorado, nem sequer um encontro para além dos namoros de brincadeira aos 12 anos. A Fisioterapia tinha sido tudo a que eu me tinha dedicado. Trabalhava já há 3 anos na Unidade de Reabilitação do IPO de Lisboa, era conhecida por todos como a louca do trabalho. Vivia e respirava pelos meus doentes. E, antes disso, tinha vivido uma vida de reclusa, entre faculdade-casa, casa-faculdade. Eu tinha seguido o conselho da minha mãe de que tinha muito tempo para viver essas coisas todas. Mas eu agora não tinha tempo nenhum... Não ia viver coisa nenhuma! Ela tinha-me mentido! Maldita! Tinha acreditado nela e vivido como uma freira! E para quê? Para nada!!
A negação dava asas à raiva. Raiva por a vida ser tão injusta! Eu só tinha 24 anos, bolas!
O meu peito subia e descia violentamente com a hiperventilação que me tremia o corpo todo. Faltava-me o ar. Sentia-me a sufocar com cada inspiração.
Vi o médico alcançar uma tablete de medicamentos da gaveta da secretária e um copo de água. Deu-me um comprimido para a mão lentamente, sem dizer uma palavra. Já devia de ser hábito. O seu silêncio facilitava os meus pensamentos turbulentos. Agradeci-lhe mentalmente por isso.
Diazepam 10 mg, calmante. Coloquei-o debaixo da língua, como já tinha feito com os meus doentes. 5 minutos mais tarde, sentia o corpo a amolecer na cadeira de plástico em que estava sentada.
- Amira. Só te consigo dizer que tens meses, poucos. Talvez 6, talvez 3. Isto não é uma ciência exata, tu sabes. Por favor, faz-me este favor e vai passar os teus últimos momentos com quem te ama.
3 meses... 90 dias... talvez ainda menos. A minha vida resumia-se possivelmente a um trimestre. Eu nunca iria sequer ter um filho. E eu sempre quis ter uma menina.
Finalmente as lágrimas correm-me quentes pelas bochechas abaixo. É como se eu tivesse finalmente aberto a torneira do meu sofrimento. Não valia a pena lutar com o médico, ele não tinha culpa, apenas me dizia o meu destino. Destino esse, sombrio.
- Quem me ama..., Doutor? Como é que eu digo à minha mãe que vou morrer em breve? Ela ainda nem tem idade para ser avó. E eu não tenho mais ninguém... você sabe, o meu trabalho era a minha vida. Como é que eu paro agora? Não tenho mais nada...
O médico encostou-se na cadeira. Tinha-o, pelo que parecia ser a primeira vez, deixado sem palavras. Já o conhecia há 2 anos e tínhamos trabalhado juntos em várias ocasiões. Parecia-me injusto ser ele a declarar a minha sentença, mas sabia que era o melhor que havia na área. Se ele dizia que nada havia a fazer, então eu tinha mesmo que preparar o meu funeral.
Quando finalmente arranjei forças e saí do consultório médico, com os pés por arrasto, parecia louca. Os meus olhos estavam côncavos e afundados, completamente vermelhos como se eu estivesse para chocar uma conjuntivite bilateral. Tinha o nariz tão cheio de líquido, que o meu primeiro pensamento foi ir assoar-me à casa de banho, o que se revelou ser um erro, visto que agora observava em todo o esplendor a minha aparência desolada. O cabelo estava desgrenhado de tanto lhe mexer, tique nervoso que tinha desde a infância. E a ruga de expressão no meio da testa que eu usava quando estava preocupada não queria desaparecer nem por nada.
Observei-me por uns longos minutos. Não contei com o meu relógio de pulso, mas devia ter sido um longo período de tempo, pela quantidade de mulheres que entraram e saíram, ocupadas na sua rotina e próprios pensamentos. Sortudas. Só esperava que esses pensamentos não incluíssem cancro.
Decidi voltar a casa de autocarro. Não confiava em mim para conduzir. Este demonstrou-se ser o dia mais longo da minha vida.
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Às vezes, basta um momento
RandomAmira tinha tudo: beleza, juventude, uma família que a amava, amigos e colegas de trabalho com quem se dava bem. E um gato, com o qual vivia. Amava o seu trabalho no hospital, ao qual dedicava todo o seu tempo. Mal esperava ela que, um dia, seria e...