Sobressaltada, larguei-lhe a mão com força. Estava dentro do apartamento de um estranho, com o Shiro ainda entre os meus braços, que me olhava como se isto fosse a coisa mais normal de sempre.
Atrás de mim, a porta anteriormente entreaberta tinha-se fechado. Pânico começou a soar nos meus ouvidos em forma de um zumbido irritante. Os meus olhos lentamente se esbugalharam com a decoração do studio à minha frente. Havia quadros e pinturas absolutamente por todo o lado, no chão, nas paredes, em cima do sofá, encostados à televisão plasma... Alguns tinham cores vívidas e alucinantes, outros depictavam a morte e o sofrimento com corpos humanos distorcidos e tons escuros e maquiavélicos.
- O que é isto? - Perguntei eu, referindo-me a toda a amalga de cores à minha frente. Tanto quanto me parecia, ele podia ser um pintor ou um psicopata. E o facto de me ter arrastado para dentro do seu apartamento não ajudava a acreditar que ele só pintava quadros como hobby.
- Isto o quê?
- Isto. Esta decoração. Todos estes quadros. Para que é que precisa de tantos?
O Estranho Atraente, como a minha consciência lhe decidiu chamar, esboçou um pequeno sorriso, olhando para o vazio.
- Pintei um de cada vez que estive doente. São memórias, cada uma feliz.
- Você chama feliz àquilo? - Retorqui, apontando para um quadro em que um homem apunhalava uma faca no olho esquerdo. Eu nem sequer conseguia olhar durante muito tempo para a pintura sem querer agarrar-me ao meu próprio olho. O pormenor era simplesmente demasiado. Uma coisa podia dizer, o Estranho tinha talento.
- Sim, bom, por trás de cada um deles, há uma felicidade associada a uma tristeza.
- Interessante. Quem diria que ter a gripe dava para toda uma obra de arte? - Ri-me um pouco com gozo. O Estranho era mesmo estranho.
Com isto, ele largou uma longa gargalhada, ressonando em todo o seu peito e fazendo o ar vibrar com a sua alegria, enquanto a cabeça lhe caía para trás num gesto de relaxamento e satisfação. O meu sobrolho ergueu-se involuntariamente - talvez a doença fosse mental?
- Talvez ter a gripe não fosse tão diferente, - Disse ainda entre risos. - o simples facto de espirrar podia fazer com que quebrasse as costelas. Não, a minha sorte nesta vida é que isto - Apontou para o seu corpo. - é feito de cristal. No fundo, pode-se dizer que sou uma princesa Barbie.
Pestanejei. Uma, duas vezes. É louco mesmo. Bolas, e ele arrastou-me para o apartamento dele. Shiro, vamos já embora! Agarrei o Shiro com mais força no meu colo, num gesto protetor. Os meus olhos desviaram-se para a porta fechada, numa tentativa de planear a minha fuga. Mas ele mantinha-se como meu obstáculo entre mim e a minha segurança.
O Estranho riu-se mais uma vez antes de se explicar.
- Nasci com o que se chama Osteogénese Imperfeita, para leigos, Síndrome dos Ossos de Cristal. Basicamente sou tão frágil como as jarras da minha avó. Nas quais ela nunca sequer me deixou tocar! Já vão em 47 fraturas com internamentos. Fora as que já nem sinto por tolerância à dor. Mas ainda tenho tempo, antes do fim do ano ainda chegarei à meta dos 50.
A minha boca abriu-se involuntariamente.
- E se, um dia se partir um osso vital, como um do pescoço por exemplo? - Questionei, com receio da resposta.
- Então nesse dia possivelmente morrerei. Não tenho mais medo da minha finitude, sei que pode vir a qualquer momento, estou em paz com isso.
Este tema batia demasiado por terra. O Estranho tinha também uma sentença por cima da sua cabeça, tal como eu... No entanto, eu não tinha vivido décadas sabendo que podia morrer a qualquer momento. Tinha passado uma manhã e já achava suficiente. Como é que ele era tão alegre? Tinha tantos motivos para chorar como eu...
- E qual é a tua sentença? Percebi no momento em que te vi. Tens o olhar de quem sabe que existe um fim. Para além disso, não querias ser minha amiga, viu-se logo.
Este homem tinha um dom com as palavras. E eu não podia deixar de notar que tínhamos desistido do tratamento por "Você". Apesar de ainda não querer abrir a caixa de Pandora que eram os meus sentimentos neste momento, conseguia reagir com um breve sorriso ao comentário brincalhão dele. Talvez fosse mais fácil falar com ele, com um estranho.
- O típico, cancro. Nem toda a gente pode ter um diagnóstico chique.
Ele riu-se novamente. Era tão fácil falar com ele. A sua alegria era contagiante. Um pouco do peso que tinha sentido hoje parecia se aliviar. As náuseas mantinham-se, mas já me tinha sentado no seu sofá a meio da conversa. Torna-se mais fácil de lidar com elas por força de hábito.
- Nada de extraordinário, como cancro do olho ou da unha do pé?
Como é que ele conseguia brincar com a morte? E o pior é que eu estava a alinhar na brincadeira.
- Não, mesmo só da minha cabeça. O que vale é que, quando morrer, provavelmente já nem sei quem sou. Tu ainda tens que ir sabendo que os teus ossos te traíram.
Ri-me, gozando com a morte. O meu riso lentamente se tornou doloroso, com a realização da grandeza deste destino. Os soluços do meu peito em resposta às gargalhadas rapidamente se tornaram soluços associados ao choro descontrolado. Quanto tempo até eu me esquecer do meu nome? Da minha mãe? Do Shiro? Quanto tempo até eu não conseguir usar a casa de banho sozinha ou precisar de ajuda para tomar banho? Quanto tempo até perder a minha dignidade? Eu tinha visto esta evolução de eventos demasiadas vezes. Fazia reabilitação para doentes em remissão, mas grande parte do meu trabalho era tentar evitar a degeneração dos outros. E este era um fim doloroso. Como é que eu ia fazer o meu luto? Como é que eu ia estar bem com a minha morte? O Estranho tinha tido uma vida inteira de preparação. Eu? Eu só tinha medo, muito medo. E, neste momento, o meu medo fazia-me soluçar alto com o choro que saía agressivamente de dentro de mim.
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Às vezes, basta um momento
RandomAmira tinha tudo: beleza, juventude, uma família que a amava, amigos e colegas de trabalho com quem se dava bem. E um gato, com o qual vivia. Amava o seu trabalho no hospital, ao qual dedicava todo o seu tempo. Mal esperava ela que, um dia, seria e...