Uma semi-promessa a desejar por mais

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-É isso mesmo, chora tudo cá para fora. Quando não sentires novamente necessidade de chorar, podes finalmente começar a viver.

As mãos que até agora me cobriam o rosto e a vergonha alheia, prostraram-se ao longo do meu corpo. Cada afirmação que saía da boca do Estranho soava-me a algo que não se devia dizer a um moribundo. Uma mescla estranha de sentimentos entre insulto e realização formava-se no meu âmago. O que quereria ele dizer com aquilo?

- Tu nunca choraste? Não sentes necessidade? Tu sabes que já não podes viver uma vida normal, certo?

Ele riu-se novamente. Eu mantinha a minha dificuldade em achar a graça.

- Achas que nunca chorei? É precisamente porque passei grande parte da minha vida a remoer na minha miséria que aprendi que não vale a pena. Estraguei bons anos de memórias. Por isso, é que agora só mantenho as boas. Os quadros significam isso mesmo - o bom do mau, a arte e a beleza por detrás de mais um internamento doloroso. E até aprendi que tenho jeito.

Soltei um ronco involuntário de ceticismo. O que é que havia de bom no cancro da cabeça? 

- Podes não acreditar agora, mas não importa. Como te chamas, já agora?

- Amira...

- Amira? Nunca conheci nenhuma Amira antes. Muito menos a dona de um Shiro. Ora ora, não podias ser mais única. Interessante.

A maneira como o Estranho estava a olhar para mim era intimidante. Deixava-me desconfortável e ansiosa. As palmas das minhas mãos começavam a suar e colavam-se ao pêlo do Shiro. Tentei esfregar uma de cada vez ao longo das minhas coxas vestidas a calças de ganga sem qualquer resultado satisfatório. 

- E tu? O teu nome é interessante? Parece-me apenas justo que me digas o teu, já que já passámos o nível da miséria um do outro. 

- Sim, tens razão. Quase que podemos ser amigos de peito. Mas não, o meu nome não podia ser menos interessante, sou o Álvaro.

- Álvaro?

Ri-me de destroço. Não podia evitar. Álvaro era mesmo muito mau. Ao menos a minha mãe tinha-se achado original. Já a mãe dele? Tinha-lhe dado o mesmo nome que o meu avô de 83 anos. 

- Sim, sim, liberta tudo cá para fora. Só podes dizer esse nome uma vez, a partir daí chama-me Al. Senão vamo-nos chatear.

A minha vontade de gozar levou-me o melhor de mim. Algo em picar este Estranho dava-me imenso prazer e ajudava-me a afastar a névoa que se mantinha na minha cabeça.

- Porquê, ÁLVARO? Não tens orgulho do teu nome, Ál..

- Eu estou-te a avisar, Amira, uma vez mais e..

- E o quê, Ál-va-ro?

Não tenho tempo de expirar após a minha última pergunta porque o Estranho, agora Al, se lança na minha direção e me ataca no meu ponto fraco, as minhas costelas. As pontas dos dedos dele fazem tortura na minha área sensível, fazendo cócegas a uma velocidade implacável. O Shiro trota para longe de alívio ao ver-se no chão e de volta à sua independência.

- Pá- AHAHAHAH, pára! Al, por favor- AHAHAH, PÁRA!!

O Al arranca de mim gargalhadas profundas e graves que nunca antes ouvira vindas da minha pessoa. Toda a minha energia se drena em resposta a esta tortura, ficando no meu rosto apenas um sorriso cansado quando ele finalmente me deixa recuperar.

- Espero que tenhas aprendido a tua lição, Amira. Há mais de onde isto veio!

- Okay, okay, eu desisto! Al!

Novamente, a felicidade espontânea nos nossos rostos é evidente. Ainda preciso de alguns minutos para acalmar a minha respiração e percebo que ele também. Finalmente me começo a aperceber o quanto próxima estou dele. Não tinha sido um problema até agora, sentindo-me completamente confortável e natural ao lado dele durante a nossa conversa e o ataque de cócegas. Mas, agora que vejo as diferentes tonalidades de verde nos olhos brilhantes dele, sinto novamente o desconforto que sentira quando ele olhou para mim de maneira estranha. Como se um calor se irradiasse no centro do meu corpo. As minha bochechas ficam quentes. Inconsciente, levo as costas das mãos à face para as arrefecer, o que ajuda um pouco.

- Tens um sorriso bonito, Amira. Devias de o usar mais vezes.

O calor das bochechas retorna a todo o gás.

- Obrigada... - Digo timidamente.

- E que tal um dia destes vires aqui pintar comigo? Talvez pintura não seja para ti, mas não perdes nada em tentar.

- Hum, não sei... eu ando muito ocupada, trabalho imenso e...

- Trabalhas? Sinceramente, estás a poupar para a reforma? 

Ei. Isso doeu.

- Al.

- Eu sei, desculpa. Não devia de ter dito isso. Só sinto que podias estar a tentar encontrar a tua paz em vez de te preocupares com a vida que tinhas. Tu própria disseste que não podes ter uma vida normal. Não sei o que queres dizer com normal, nenhuma vida o é, mas podes fazer da tua algo extraordinário. Usar bem o teu tempo. O que achas? Há algo que gostarias mesmo de realizar? 

O pensamento prolongava-se na minha cabeça desde que o vira. O quão ele era atraente e a curiosidade de como seria beijar alguém como ele. O meu primeiro beijo de chapa aos 12 não me tinha dado absolutamente elucidação nenhuma. Mas eu não conhecia o Al. Ele era um estranho para mim. E parecia-me difícil beijar alguém que mal conhecia, mesmo que ele se tivesse aberto comigo.

- Haver há. Mas não tenho tempo de concretizar essas coisas.

- Queres-me contar? Talvez eu te consiga ajudar.

- Não, deixa estar. Não me sinto preparada para te contar os meus sonhos.

Ele cruza os braços ao peito e dá um passo atrás, num gesto de consideração.

- Okay, eu respeito isso. Mas então prometa-me que voltas para pintar comigo esta semana. Ia-te fazer bem.

- Só te posso dizer que vou pensar nisso.

O Al forma um semi-sorriso com o canto direito dos lábios.

- Tudo bem. Já é bom se apenas pensares em mim.

E com isto, eu pego no Shiro e piro-me do studio do Al, confusa, atordoada e entusiasmada com o que virá.



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⏰ Última atualização: Apr 28, 2020 ⏰

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