Qualquer cidade grande parece ter proporções muito mais amplas quando se é, de certo modo, pequeno. Euclides mal se enquadrava na categoria de classe média baixa, (se é que essa coisa existe mesmo). Vivia nos padrões considerados normais de uma vida normal; simples, pobre e esperançoso. O governo ainda não tinha inventado um jeito de roubar a esperança do povo, mas com certeza já estava trabalhando nisso. Euclides não chegava em casa cantarolando e rindo como um excêntrico magnata eufórico, não tinha motivos para isso. Contudo, chegava em casa todos os dias. Não na sua, mas numa alugada a sofríveis custos. Chegava sempre muito sério e pacato, como chegam os homens comuns. Nunca havia lhe ocorrido profundamente no espírito o sentido real do que era o comum, do que poderia ou deveria ser o comum. Aliás, olhando bem para Euclides, podia-se imaginar que nunca lhe havia ocorrido o sentido real de nada. Algumas vezes seus olhos pareciam buscar o nada no nada, e tudo isso incrivelmente parecia não incomodá-lo.
Ao chegar, trazia uma pequena pasta com todo o peso esmagador da realidade que carregava todos os dias consigo. Abraçava e beijava a esposa que havia chegado pouco antes e já tomava as devidas providências na cozinha. Era possível ver a cozinha assim que se adentrava a porta da sala. Euclides tinha um prazer imenso em ver sua esposa cozinhando, porém o fazia sempre da sala.
A cozinha, de tão pequena, tornava impossível a permanência dos dois nela ao mesmo tempo. Era quase como infringir as leis da física (e toda aquela bobagem que ninguém entende).
Mas ainda assim Euclides chegava, ia até a cozinha, beijava-a, abraçava-a e saía de lá para não atrapalhar.
Ficava na sala sem nenhum conforto num sofá púrpura que já estava na casa quando se mudaram e que hoje era dividido com uma numerosa família de ratos. Ficava lá admirando, olhando quase sem ver, como se entre suas retinas e a entrada da cozinha houvesse algo. E havia... Sim, havia ali um sonho, uma espécie de imagem em movimento que se passava em tempo real com som, aroma e até mesmo certa solidez. Via-se chegando em casa como invariavelmente acontecia todos os dias, sem cantar, apenas chegando. Todo o resto, no entanto, era diferente; Não eram visíveis da sala nem a cozinha, nem o quarto. Havia nessa divagação uma ante-sala espaçosa toda pintada de um azul celeste muito bonito como aquelas pinturas que só ficam bem em jornais de lojas de móveis. Bem ao lado da entrada havia uma pequena estante na cor marfim que ele também via nos jornais de móveis e onde deixava sua pequena pasta. Andava passos largos desviando no caminho de um chafariz com estátuas de anjos urinando para só depois ir até a cozinha e lá, consumar o invariável ritual de beijar e abraçar a esposa. Só que nesse feliz holograma que se mostrava perante seus olhos, sentava em seguida numa cadeira muito sem conforto (não tinha imaginação o suficiente para imaginar o conforto), colocava as mãos cruzadas sobre uma mesa de mármore no centro da cozinha e ficava ali, por horas, contemplando o espetáculo que tanto almejava; ver a mulher cozinhar. O latido de um cão foi o grito de guerra das tropas que viriam devastar a ilusão na sua frente. Mas não havia problema, era apenas a rotina. A rotina que havia se enraizado em sua vida de modo que não podia ou queria mudar, não podia tentar ou pensar em mudar. Era o sistema impondo, ditando através da frequência televisiva o que deveria ser o certo.
Todos os amigos do trabalho faziam a mesma coisa; chegavam em casa na mesma hora, beijavam e abraçavam as esposas do mesmo jeito. Certo dia, que era mais um para Euclides, a sorte pareceu chamar o seu nome. No ponto de ônibus, onde via passar vários que ainda não eram o seu, e onde perdia todos os dias quarenta minutos de sua vida, viu diante de si uma dessas "oportunidades" que aparecem para os outros por aí. Um homem que se vestia como um homem de bem, que falava como um homem de bem e até fumava um cigarro como tal, se aproximou dele. Começou uma conversa muito cortês e logo envolveu Euclides numa gama de banalidades que começavam no nada e não acabariam mesmo se ficassem ali por dez mil anos. Depois, avançou para o estágio de uma sincera e gratuita simpatia, uma preocupação com o seu bem-estar. Euclides em certo momento o olhou com estranheza, uma vez que nem ele próprio se preocupava com seu bem-estar. Mesmo assim, não se lamentava nem tão pouco confessava nenhuma de suas injúrias, só falava o que falava com sinceridade. E do pouco que falou, com a sinceridade com que falou, pareceu comover aquele estranho, tão estranhamente simpático e imediatamente prestativo.
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Euclides e o pé de feijão
HororO terror tem inicio num dia comum do pacato Euclides. A sorte parece mudar de maneira misteriosa e os acontecimentos o levam a extremos de dor nunca antes imaginados.