– Preciso ir. - Lucas diz, ignorando as vezes que Bruna chamou ele.A garota ao meu lado pediu que os lanches fossem embalados para a viagem, me dando as bebidas que estavam numa sacola plastica. No momento em que ela paga os lanches, saímos correndo atrás do menino na frente.
Consigo alcançar ele - vantagens de jogar futebol quase todo dia.
– Por que ela só chegou a essa hora? - digo, ofegante. – Não era suposto ser de tarde ou coisa assim?
– Aparentemente não ensinaram que chegar tarde na casa dos outros é falta de educação nas particulares que essa dai frequentou. - ela diz entre respirações curtas, ainda correndo.
Não que fosse necessário realmente correr. Eu acho que ela estava correndo simplesmente porque odeia comer coisas frias (não quando a coisa é pra ser servida fria, claro). Eu estava correndo por um motivo: curiosidade pra saber quem era a garota que Lucas fez tanta questão de esconder.
Só consegui ver o rosto dela pelo celular. Eu sou desses que concorda que as pessoas online são bem diferente delas na vida real.
E, quando cheguei na porta da casa de Lucas e vi um carrão (que com certeza valia mais do que eu já gastei em toda a minha vida), eu soube de quem era. Gente rica...
Ouvi a mãe de Lucas dizer um "pode entrar" com um sorriso no rosto, e a menina negra clara entrou com uma carranca, sem ao menos falar um "oi" pra nova hospedeira.
Naquele momento, ela não era nada bonita.
Acho que Bruna também percebeu a atitude mal educada da garota, porque logo virou pra mim com uma cara que dizia "caralho, eu vou pegar essa mina na porrada" (coisa que eu sinceramente não duvidava, porque ela amava mais a tia Karina - mãe do Lucas - do que a própria mãe).
Depois disso que veio a pior parte: Tínhamos que descarregar as malas daquela patricinha. E, fala sério, ninguém precisa de tantas roupas assim, de verdade.
Foram mais ou menos 5 malas grandes e 3 bolsas. Todas carregadas até o interior do quarto da menina (um quarto que a tia Karins tinha arrumado só pra ser o quarto dela - o que era uma atitude considerável, já que aquele era o quarto das bagunças, onde ela guardava as coisas que achava importante ou que poderiam ser usadas algum dia).
Não era grande coisa comparado a o que ela já deve ter tido, mas era um quarto. Tia Ka pintou as paredes de rosa, colocou uma cama com travesseiros e também tinham umas prateleiras.
Notei que a menina observou o ambiente com um certo desdém no rosto.
– Eu queria te comprar um guarda roupa, mas pensei que você poderia continuar usando as malas como um. - disse tia Karina, com um sorriso modesto no rosto.
– Saia. - a menina disse, apenas. Sim. Na primeira vez numa casa nova ela simplesmente disse uma porra dessas. Sem um "obrigada, não precisava de tanta coisa" ou um "valeu por me deixar ficar aqui".
E foi exatamente nesse momento que eu tive a plena certeza de que a Bruna iria matar aquela menina e as paredes daquele quarto, de rosas, se transformariam num vermelho sangue. Eu e Lucas olhamos sincronizadamente pra garota que, coincidentemente, era a mais próxima de Rebeca.
Silêncio. Muito silêncio mais o olhar mortal que Rebeca recebia.
– Eu não sei como é lá onde você morava. - Bruna começa, o que me faz ficar tranquilo pelo seu tom de voz frio. "Indiferença é pior que raiva", ela vive repetindo. – Mas por aqui, a gente respeita os mais velhos e pede obrigada quando recebemos favores. - ela continua, tentando ser interrompida pela mais velha do recinto, que recebe um "calma, tia". – Por aqui, nós sabemos ser gratos. Tu tem que aprender isso, se não tu roda rapidinho. Perde o respeito de geral. - eu sei que a coisa tá séria quando ela fala "tu". é intimidante, principalmente quando ela está quase enfiando o dedo no seu olho. – Tu provavelmente deve estar acostumada a ter criadas e serviçais pretas, né? Fazia elas de escravas. Mas por aqui, não. Mulheres pretas são as raizes dessa favela. Ou tu trata elas como rainhas, ou é você mesma que acaba no tronco. - sei lá, ainda bem que eu sou amigo dela. – Ou tu acha que pode falar assim com todas as pretas que tu encontrar por aí? Numa dessas tu trata uma mãe de bandido mal. E aí? Como é que fica? - ela diz, se aproximando ainda mais da menina. – Como é que fica, porra? - nesse ponto ela já está quase gritando, o que me faz chegar mais perto por precaução. – Eu achava que uma das vantagens de ser rica era ser bem educada, mas se todas as ricas forem igual a você, eu tava muito da errada. Agora fala, vai, repete. Fala do jeito que tu falou com a tia de novo pra tu ver se eu não faço esse cabelo alisado teu cair em tufos. Fala.
Rebeca a esse momento já estava tremendo. Já tinha perdido toda aquela pose arrogante e metida de quem vem pela favela pela primeira vez. Estava a uns 5 centímetros de encostar com Bruna e, sinceramente, eu entendia o medo. Minha melhor amiga consegue ser assustadora quando quer.
– Desculpa. - a menina começou, olhando pra tia Karina, a voz tremendo. – Eu não preciso de um guarda-roupa ou coisa assim, desculpa. Obrigada por me deixar ficar. - ela disse e Bruna, satisfeita, se distanciou dela, logo depois estendendo a mão.
– Meu nome é Bruna, sou a melhor amiga do Lucas. Prazer. - diz, com um sorriso no rosto. Inacreditável.
Depois disso ela se apresentou pra todo mundo devidamente, segurando demais a minha mão no processo. É, eu sei que sou muito gato... deve ter criado um crush instantâneo em mim.
A Bru vive dizendo que eu me acho, mas cara, se eu não me achar bonito, quem vai?
A verdade é que Deus estava inspirado demais quando me fez. "Quando Deus te desenhou, ele tava namorando, na beira do mar...".
Mas sério, se eu me sinto assim hoje é pelas pessoas que tenho ao meu redor. Principalmente a Bruna e o Lucas, que vivem me colocando pra cima.
Já fora do quarto da menina que (mesmo que nenhum de nós gostasse de admitir) provavelmente seria adicionada de forma natural a nossa panela, vamos a cozinha.
– Cara, você fica assustadora quando está brava. Eu sempre esqueço depois de ficae um tempo sem te ver assim... - observo, ela faz uma careta pra mim.
– Eu nunca te vi assim, Bruna. Não precisava e...
– Claro que precisava, mãe! - Lucas a interrompe. – O seu mau é mimar demais as pessoas. Ela tava sendo grossa sem necessidade, completamente insuportável, a Bru só fez o que eu faria de um jeito menos assustador.
– É claro, enquanto a Bruna é um leão, você é um gafanhoto. Seria bem menos pior. - digo, fazendo um furo com um dos dedos na bebida do lanche. Ele faz uma careta e eu respondo com um sorriso. – Ah, coe, o lancha já gelou... eu odeio sua prima, com todo respeito...
– Não precisa do respeito, eu também o faço. E é só colocar no microondas, Cabeça. - ele diz, já reproduzindo o ato e ajustando o tempo para 15 segundos.
– Desculpe, Cérebro. - digo, me aproximando dele e o abraçando por trás. – Não sei o que faria sem você!
Ele resmunga e tenta escapar do meu abraço e dos beijos molhados propositais. Quando ele consegue o fazer, eu o persigo e ele grita por socorro. No fundo, eu ouço as risadas da Bruna e da tia Karina.
E bem, esse é um pedaço bem grande do meu mundo.
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de lá
Teen FictionUm clichê digno de um filme americano passado em uma favela do Rio de Janeiro. Um grupo de adolescentes tenta ultrapassar as dificuldades da periferia e achar o amor numa história sobre amizade e desigualdade. -------------------- minha autoria. plá...