Era a última construção antes da reserva, e a casa parecia encravada no meio da mata. Ele achava aquilo o máximo. Não se incomodava com o número excessivo de aranhas que aparecia em sua garagem, ou com os eventuais animais silvestres que passeavam pela sua varanda. Era a natureza pulsando à sua volta, e ele adorava.
Quando o tempo virava, ele sentia um pouco de medo. A ventania na copa das árvores gerava uma sinfonia, lembrando uma turba de fantasmas sussurrando uma melodia incompreensível, ou um cântico soturno como um Sabath na clareira da floresta.
Quando chovia forte, parecia que os céus estavam prontos para desabar sobre a sua cabeça. Os relâmpagos iluminavam a noite em flashes, que transformavam brevemente a noite em dia, distribuindo eclipses ao contrário.
Os trovões eram um caso à parte. Explodiam como bombas e duravam segundos eternos, desdobravam-se pela noite e sobrepondo em intensidade os sussurros malignos do vento.
Todas as noites de tempestade eram assustadoras.A luz do dia trazia a felicidade da sobrevivência. E a beleza. Algumas vezes a beleza dos raios de sol, sobre o cume verde da reserva, com as suas borboletas coloridas e a diversidade de pássaros cantando. Nos dias mais frios, a beleza dos nevoeiros matinais, transformando a reserva em um pedaço do paraíso na terra. Nestes dias, ele adorava sair da casa e caminhar entre as nuvens, como se fosse o próprio Deus ou um de seus anjos. A paz dos dias compensava as noites assustadoras.
Ele era feliz, na última casa da rua. Até começar a escutar coisas.
Não ventava e ele estava deitado à rede descansando o almoço, quando começou a escutar o murmúrio incompreensível. Lembrava o vento na copa das árvores, mas naquele momento nenhuma folha se mexia.
Ele saltou da rede assustado, caminhando na direção de onde o som parecia emanar, e chegou ao limite entre o seu quintal e a mata. Era de lá que vinha o cântico misterioso. Como se uma voz chiada o chamasse. Um vento inexistente sugando o ar para dentro do caminho das árvores.
A sua mente assustada queria correr para dentro de casa, mas contra todos os seus instintos, sentiu-se atraído para dentro da mata. Um passo de cada vez, ele foi entrando na reserva, evitando os galhos caídos e ignorando a possibilidade de encontrar cobras ou aranhas pelo caminho. Ele olhava para frente, mas caminhava guiado pelos chiados que o chamavam e não pelos seus olhos.
As árvores iam crescendo de tamanho, e ele via cada vez menos o azul do céu, na medida em que se aprofundava na mata.
O chiado as vezes tornava-se difuso, parecendo emanar de todas as direções ao mesmo tempo, e em outras o puxava claramente para o interior da reserva. Havia perdido a noção de por quanto tempo caminhava, quando o som desapareceu.
Sentiu o verde das árvores girando em velocidade diante de seus olhos confusos, caindo sentado e tonto ao chão. Fechou os olhos por alguns segundos, e, quando os abriu novamente, estava sentado em meio a uma mata fechada e completamente sem noção de onde estaria o caminho de volta até a sua casa. Respirou fundo tentando controlar o desespero.
Estava perdido. Os sons que o haviam guiado terminaram em um silêncio completo. A mata agora o lembrava o interior de um caixão, sem que um único passaro cantasse, ou um único inseto emitisse qualquer ruído.
Ele lembrou-se da matéria que havia lido sobre os insetos. Sem cordas vocais, insetos são incapazes de ter voz. Os sons que emitem são obtidos esfregando diferentes partes do corpo. Parecia não haver um único inseto esfregando partes do corpo na mata, o que lhe parecia impossível. Pensou em gritar, apenas para certificar-se de que ainda possuía voz, mas desistiu. Temia o que sentiria caso não conseguisse. Era melhor não saber.
Foi quando ele percebeu o primeiro passarinho morto. Caído próximo às raízes de uma imensa araucária, o que chamou imediatamente a sua atenção foi a cabeça do animal. Seus olhos estavam completamente brancos, como os olhos do cego que pedia esmolas próximo ao hospital da cidade. E ele tinha o pequeno pescoço quebrado, virado na direção oposta.
Olhando o imenso tronco da araucária, não pôde deixar de reparar que as marcas pareciam feridas, cortadas por lâminas em suas cascas. Inicialmente, pensou que pareciam dois cortes suturados com linhas grossas por um enfermeiro incompetente, mas depois, observando com mais cuidado, conseguiu visualizar a forma de um par de chifres de cervo.
Vasculhou as árvores mais próximas e encontrou outra, marcada com o mesmo símbolo, e em sua base, outro passarinho cego com o pescoço virado. De árvore em árvore marcada, ele foi avançando mata à dentro. Sempre com os chifres de cervo esculpidos no tronco, e os passarinhos de olhos brancos em suas raízes.
Uma trilha macabra, que tomou o lugar dos sussurros do vento como seu guia na floresta. Estava hipnotizado e, apesar do medo, não conseguia evitar o chamado. Seguia o caminho, imerso no inexplicável silêncio da mata, e tentando controlar os ruídos ensurdecedores que explodiam em pensamentos enlouquecidos dentro da sua cabeça.Os galhos estalavam sob seus passos acelerados. Já havia passado por dezenas de árvores marcadas e passarinhos mortos. Sentia o cheiro inebriante da terra úmida, em um perfume exalado do líquido da veias dos deuses, subindo através das entranhas do solo. O ocaso já trazia matizes de vermelho e laranja para misturar-se ao verde, preconizando o fim do dia e a chegada da noite. Momentos antes da escuridão total, ele encontrou a cabana.
Dezenas de passaros mortos à sua porta. Todos cegos, todos os pescoços virados. E na sua porta estava esculpida outra vez a marca, agora feita com um pouco mais de capricho. Um círculo com chifres de cervo.
Ele não conhecia a cultura celta , ou saberia que era a representação de Cerunos, um dos seus deuses mais antigos. Deus das florestas e dos animais, representava a força do poder masculino, o ciclo da natureza, a morte e o renascimento.
Dentro da cabana, ele via a luz irregular e avermelhada de uma fogueira. E ouvia novamente o sussurro das copas das árvores em forma de cânticos suaves. Hesitou por um momento, e queria sair correndo dali. Fugir de volta, rumo a última casa da rua, mas ele sentia que já não existia. Só a escuridão da floresta morta e silenciosa. O único sinal de vida estava na cabana. A atração irresistível do desconhecido. A próxima etapa do ciclo, com olhos brancos e pescoços torcidos. Ele girou a maçaneta, abrindo a porta da cabana, e mergulhando no princípio do fim.Pode entrar. Tenho certeza de que você vai adorar. O visual é lindo aqui. É uma imensa reserva, o que garante esta paz e a tranquilidade de saber que poderá desfrutar para sempre deste verde. Sente o cheiro da mata, que gostoso.
Eu estava maravilhado com a última casa da rua. O visual era incrível, e morar tão próximo da natureza era um sonho. A corretora tinha toda a razão quanto ao verde e a paz. As araucárias imponentes eram emolduradas pelo céu azul e um convite à contemplação. Alguma coisa era diferente ali, mas eu não conseguia definir o que era. Eu estava pronto para começar um novo ciclo na minha vida.
Ainda sem perceber quanto me incomodava o silêncio da mata, eu ignorei a falta de pássaros e insetos, para apertar satisfeito a mão da corretora de imóveis.
Negócio fechado!