Tanatos

14 1 2
                                    

Colocou a blusa branca, impecavelmente passada e engomada, para dentro da cueca. Arrumou com cuidado, para que ficasse perfeitamente ajustada ao corpo. Evitava assim chamar atenção para a pequena barriga, construída ao longo dos anos de consumo de cerveja. Vestiu a calça social e o paletó, finalizando com as meias e o sapato, muito bem engraxado, o visual profissional que almejava alcançar. Estava perfeito!

Isto se pudesse ignorar, claro, o buraco enorme na parte de trás da cabeça, por onde os pedaços espalhados do cérebro haviam voado para pintar de vermelho a parede do antigo escritório.

Teria ainda algumas horas de trabalho pela frente, até que pudesse finalizar a reconstrução e a maquiagem do defunto. Só depois de terminado, e com bastante capricho, o executivo poderia se apresentar publicamente pela última vez, naquela que seria a sua última reunião.

Já era tarde, e preparava o corpo desde as oito horas da manhã. Primeiro, trocara todo o sangue do corpo pelo fluido arterial. Sempre odiava esta parte, especialmente por precisar massagear o corpo do defunto para garantir a perfeita drenagem. Era estranho. Agora, finalmente iria iniciar o que ele considerava a parte que melhor realçava a sua arte: Reconstruir o que houvesse de destruído pelo corpo e maquiar o seu rosto. Quando ele acabasse de executar a sua mágica, o defunto pareceria vivo por uma última vez, aproveitando um breve cochilo deitado em seu caixão.

No exercício da sua arte, já havia visto de tudo. Pessoas espancadas, atropeladas, assassinadas. E a sua cota de suicidas, como o executivo deitado sobre a mesa. Nenhum deles parecia se preocupar com a imagem que seus parentes e amigos veriam pela última vez ao fechar a tampa de madeira. Preocupar-se com isto era o seu trabalho. Isso era ser um Tanatopraxista.

O Deus da morte na mitologia grega. Era dele a obrigação de fazer com que cada um dos seus defuntos pudesse parecer vivo, ainda que apenas por uma última vez. A tranquilidade e quase felicidade, poucas horas após estourar os seus miolos. E nunca falhara na missão. A morte era a sua amante e companheira.

Os braços do rato indicavam as onze horas da noite no relógio de mau gosto que mantinha em sua sala de trabalho. Finalmente terminara a sua missão. O antes estressado executivo repousava agora em seu caixão, com a aparência de quem retornava de férias e não de quem partia para a eternidade. O artista agora precisava descansar.

O rosto no espelho definhava em marcas de cansaço. Sulcos profundos em seus olhos deixavam aflorar uma idade que ele nem sempre parecia possuir. Recebera um presente que algumas vezes parecia uma maldição. O mistério do tempo, quando o tempo deixava de ser importante. Ele sabia que precisava tratar do seu próprio corpo com mais cuidado. A eternidade podia ser longa demais para a matéria. Lenços umedecidos podem limpar a pele seca sem que ela volte a descascar. Havia sido complicado corrigir, quando aconteceu pela última vez, não iria permitir que acontecesse novamente. Estava fraco demais para cuidar disto agora.

Ele iria descansar por algumas horas. E depois realizar mais da sua mágica. Dar um pouco de cor a sua pele opaca. Não era fácil cuidar dos mortos para que parecessem vivos. Ele sabia melhor do que ninguém que a sua companheira era exigente.



Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Aug 02, 2019 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

Pequenos SegredosOnde histórias criam vida. Descubra agora