Belém do Pará

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Germano já viveu mais de sete décadas, certamente. Avô de Sarah, sempre conta histórias, histórias que eram contadas a ele quando tinha, mais ou menos, a idade da neta, Sarah, nove anos. Histórias que não estão nos livros. Histórias contadas por seus tios-avôs nos finais de noite, quando eles deitavam-se em suas redes, no silêncio do pequeno quarto da casa de taipa no interior da cidade de Vigia. O lugar, mais precisamente, ficava na ilha de Itapuá, localizada à frente do município. Em quinze minutos, se puder e sentir curiosidade, você pode atravessar para lá numa dessas lanchas "popopô". É para lá que Germano, que morava em Belém, capital paraense, ia nas férias escolares. Naquele pedaço de chão mágico, ele vivia num mundo encantado repleto de simplicidade e seres encantados.

Mal chegava a "boca da noite", termo empregado pelos mais velhos para designar o começo da noite, para que logo fosse servido o jantar à luz de lamparina. Não havia eletricidade. Feita a ceia, em seguida, todos iam dormir. Germano lembra de seu prato de alumínio reluzente, ariado à beira do jirau. Era o prato preferido da sua vó, um de louça branquinho, de linhas laranjas e azul marinho na borda. O avô de Sarah lembra também do caneco de alumínio que era metido dentro de um pote. A "boca" do pote era coberta por um pano marrom claro para que não caíssem sujeiras dentro dele, servindo assim de coador.

Depois desse "ritual", a vó Lucila, que na verdade era tia-avó de Germano, dizia a ele para ir urinar na parte externa da casa. Naquele grande terreiro, como era chamada a parte de trás do terreno, à luz do luar, Germano se posicionava. Ele ouvia o barulho dos patos e também da própria avó, que emitia um chiado para facilitar a saída da urina. Assim eram os costumes de Itapuá.

Voltando para dentro da casa, Germano fechava a portinhola típica do interior: só havia a parte de baixo, mas a altura era suficiente para uma criança não pular por cima. Em seguida, sentava-se à mesa e esperava a avó terminar de lavar a louça no jirau. O jirau era uma espécie de pia feita em madeira. Algumas vezes, era localizada na parte de fora da casa, conjugada aos fundos da cozinha. Outras, encontrava-se bem distante, cerca de quatro a seis metros a dentro no terreno. Hipnotizado pelo ritmo da noite, Germano, ao ver a dança do fogo na lamparina manchada, o pavio encharcado de querosene e a fumaça preta, perpassava seu dedo indicador através daquela chama amarelada.

No quarto, destrancado após passar uma chave enorme duas vezes pela fechadura da porta, Germano ficava olhando o pedaço de náilon azul, amarrado à chave, depois as sombras dos poucos objetos projetados na parede de barro até sua avó armar a rede. Em meio aos barulhos da noite, na orquestra formada pelo som dos bichos que emitiam ruídos amplificados pelo breu, vó Lucila começava a contar histórias.

Tinha contaria para todos os gostos: tinha a do Rei das Forças, a do filho do pescador com a filha do rei, do João Corajoso, da onça, do macaco e até do jabuti, que queria ir à festa no céu, mas não tinha asas. O jabuti deu o seu jeito de chegar lá, porém, teve um final trágico e seu casco precisou ser remendado. Além dessas, haviam várias outras histórias de reinos e personagens encantados. Como disse, histórias que você não encontra em livros por aí. Para Germano, as férias eram a melhor época do ano, pois podia ficar até tarde ouvindo aquelas narrativas fantásticas. O garoto era embalado pela voz da avó e quase não sentia o forte frio que entrava no ambiente. Uma das paredes do quarto era de tábua e as frestas eram tampadas com pedaços de revistas para dificultar a entrada da friagem, o que amenizava um pouco a coisa. As outras paredes eram de barro.

Logo pela manhã, o café já estava pronto. Café puro, negro, que Germano tratava logo de encher com açúcar. Como dizia sua avó, ficava o puro "mér", jeito como ela pronunciava mel. Por aquelas bandas tudo era longe, vendia-se um pão caseiro delicioso, porém era um jovem que passava cedo de bicicleta e deixava por lá. Para Germano, um dos maiores prazeres era molhar essa iguaria dentro da xícara de café e, por fim, comer o "biquinho do pão".

Itapuá - Um Pedaço de Chão MágicoOnde histórias criam vida. Descubra agora