I.

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Tirou a saca de açúcar do chão e pôs no ombro; com os passos mais firmes que podia dar, entrou no submarino por um rampa de madeira, desceu por escadas escuras e traiçoeira; atravessou uma portinhola passando por corredores que de tão apertados, tinha que se curvar. Quando chegou no porão de carga que ficava uma parede de aço de distância do maquinário- o cheiro de couro curtido, suor, temperos dos sacos, entrou pelo seu nariz, encheu seus pulmões e embrulhou o estômago vazio. O zumbido baixo, grave e constante das engrenagens o fizeram por um segundo perder o senso de direção. Quando se livrou do peso em uma pilha, respirou pela boca e soltou pelo nariz se sentindo feliz e aliviado por ser a última saca de que colocaria nas costas aquele dia.
    Milton Onofre vivia como estivador á mais anos que se dava o trabalho de contar. Alto e espadaúdo já era conhecido pela tripulação daquelas embarcações que aportavam todos os dias para descarregar e recarregar mercadorias de todos os tipos.
   Não sabiam do seu nome nem falavam a sua língua mas reconhecia a feição grosseira e por falta de apresentação formal o chamavam por “Mulato”. Por simples desinteresse em saber quem ele era, e por ser assim que era chamado pelos que o contratavam; “ você sabe onde está aquele mulato que fica andando por aqui?” Odiava a palavra, mas mesmo assim carregava nas costas essa pedra que mesmo a contra gosto, teve que aprender a aceitar o peso.
    Mas em geral, era tratado com simpatia pela maioria, mesmo sendo muito sério e sisudo, tinha uma aura amigável em volta de si suficientemente radioativa para atrair uma boa atenção, principalmente com os marinheiros franceses que o adoravam e fazia  questão de apertar sua mãozorra e dizer:
    -Comment ça va, monsieur mulatour ?
E nesse momentos desamarrava a cara seria e até esboçava um rápido sorriso simpático.
   Passou a maior parte da vida em frente a praia, sempre familiarizado com o que salgado. Os pescadores em cima da pedra com linha e anzol sentados tranquilos, as dezenas de quiosques, os turistas, o movimento que começa cedo e o elemento que caracterizava aquela terra como ela é: Os estrangeiros de cara pálida e feições sombrias que infestavam as praias usando pesados sobretudo escuros sempre secando com um lenço o rio de suor que escorria do rosto e pescoço para empapar a roupa.
   Muitos desses estrangeiros mal o submarino emergia,  já pulavam para terra firme com o intuito de criar raízes fundas naquele continente de calor. Largavam seus deuses, costumes, santos e roupas; colocavam a casual calças e camisa de tecido leve e sandálias de tira; vestes de trabalhador, beca de quem é popular e o pouco dinheiro que ganha é um rio que deságua na cachaça e na jogatina.
   Se era cristão adotava novos santos padroeiros, se é de outra religião e pretende se manter na fé, apenas fechava a boca e fazia seus ritos de portas trancadas e cortinas fechadas.
  Era um lugar de se ficar, tudo muito perto, fácil de se achar e tolerante para os costumes. Quem era beato tinha as muitas igrejas nas praças em frente a praias; para quem era dado a festa,  tinha bares e rodas de bebidas em vários pontos toda hora do dia; quem era do amores escusos na calada da noite, sempre e em qualquer horário se trocava olhadas furtivos fácil de se pegar; para os corações moles de poetas e artistas, sempre as portas do bar e as casa das mulheres dama estavam abertas com mesas vagas para se virar o copo e espaço o suficiente para sentirem pena de si mesmo.
  Para quem queria trabalhar, se podia carregar saco, levantar caixa e casas de alvenaria, ser vendedor ambulante, trabalhar nas cozinhas dos restaurantes, nas fábricas recém abertas e praticar trambiques de todo tipo.
  Ao lado das pilhas sacos de grão e estrangeiros que fumavam, Aurélio admirava uma fotografia de uma menina. Ao seus pés um baú aberto com as roupinhas reviradas. Sem camisa, com o corpo brilhante de suor e cigarro na boca soltando fumaça pelo nariz e o cenho franzido.
  Milton ajeitou a última saca na pilha e disse:
    -Essa foi a ultima; achou alguma coisa?
    - Nada, achei uns pacote que pensei que era o do tipo burley, mas era só café.
    - Tudo bem, então apaga esse cigarro nojento e vamos que temos mais coisas para fazer.
Espiou o que estava nas mãos do amigo com curiosidade; Aurélio soltou uma baforada e logo respondeu a pergunta da não dita:
     -Eles disseram que que a menina morreu de tifo e a família está mandando esses roupinhas de volta para Espanha.
Disse apontando para a foto e coisas bagunçadas.
     -Nós não temos tempo agora ou já se esqueceu o que temos que fazer?
Colocou os vestidos dentro do baú e fechou a tampa com o pé. Quando Aurélio se preparava para uma última tragada, foi impedido com um tapa que o cigarro levou de Milton, o cotoco que restava foi para embaixo de seu sapato.
    - Ô seu animal, por que tu fez isso?
Milton nem se deu o trabalho de responder, já subia as escadas pisando com força.
  Com pesar pelo cigarro perdido, Aurélio cumprimentou os estrangeiros com aceno, enfiou a camisa pela cabeça e também subiu acompanhado pelos os olhos brilhantes dos que ainda fumavam.
  Sem sobrenome, Areliano veio fugido, tendo a mãe o segurando com uma mão e o irmão caçula com a outra, deixando para trás a pequena casa, um pai desconhecido e uma irmã mais velha já casada. A falta de água e alguma moléstia infantil genérica levou o menino recém saído do peito e em um buraco cavado por mão duras e olhos secos de lágrimas o corpinho foi velado em cova rasa com apenas dois paus cruzados para marcar o local; meia reza depois, já estavam a caminho do litoral. Alguns meses depois foi a vez da mãe, assim mesmo, de repente enquanto lavava fardas em uma bacia de alumínio.  Foi chamado para ver o cadáver dela tombando enquanto as colegas em volta por um momento colocavam a mão no peito de pesar e logo voltavam a esfregar as roupas apressadas. Uma das amigas íntimas não deixou chegar muito perto enquanto era levada. Mas ele ficou alí sentado, embaixo do sol da tarde apático até a torneira que ela alugava ser ocupada por outra. O copo foi levado para não-se-sabe-onde, se foi enterrado ou derretido para fazer sabão igual os prisioneiros; ele não sabe, mas duvida que tenha sido posta na terra como uma pessoa, não possuía  documentos e tinha a miséria carimbada na cara. O menino sem ninguém, foi criado pela rua, conhecedor dos becos e vielas e sempre queimado de sol.
    Subiu a escadinha de ferro admirando o ambiente que tinha em volta de si. Era quando a decadência ia se organizava dentro de si mesmo e acabava se tornando, na verdade, uma bela pintura. Essa poderosa sensação de quando se vê alguma coisa não necessariamente bonita, mas os traçados que se combinam de uma estranha e agradável forma; com as mãos no bolso, admirava de boca entreaberta. Já era acostumado a se enfiar em buracos, correr pelos bueiros e se esconder embaixo de telhas e dentro de cisternas, então caminhar por corredores tão estreitos não era um problema para ele. Mas não conseguia imaginar viver semanas, meses e até anos embaixo da água sem ver a luz do dia.
    Apurava os ouvidos para tentar ouvir algum sinal de vida humana, mas o capitava era apenas o zumbido do maquinário. Sem passos pesados ou suspiros, só as vezes ouvindo o clique das engrenagens e o som de metal rangendo. Mesmo na luz baixa, via grandes manchas de ferrugem e buracos comidos pelo tempo. Se perguntava como aquele não tinha afundado, mas bem sabia de uns outros que estavam em piores situação e faziam viagens mais longas que aquele. Lenço-de-bolso: o submarino, foi construído em uma época de otimismo em relação a navegações e comércio exterior. Depois de passar séculos tendo os barcos sendo assaltados por imensas aves armadas de pedregulhos do tamanho casas, finalmente os entendidos da ciências, desenvolveram um bom veículo que pudesse burlar o ataque das aves. Eram bichos assustadores de plumagem rajada semelhante as corujas e o bico curvo típico dos abutres. Em volta da cabeça uma juba de penas curtas, pontudas e pretas como a dos urubus. As patas se assemelhavam a mãos humanas com cinco dedos revestida de uma pele áspera e avermelhada. Mas quem as viu voando e contou depois como foi, sempre se atentava em um detalhe: os grandes olhos molhados de gente. Mesmo com todo o aparato de pássaros, os olhos grandes e expressivos era o que mais assustava. Era como se pudesse caber o oceano dentro das órbitas.
   Toda vez que uma nau saia do porto e se tornava um pontinho no horizonte, se ouvia o bater das asas que logo era acompanhado do estrondo da pedra que caia matando a tripulação só deixando alguns poucos vivos. Jogavam grandes blocos de basalto tirando do fundos das montanhas que submergiram depois de um grande terremoto. Terremoto esse que marcou o início da vinda dessas aves para o continente que antes nunca se tinha ouvido falar ou escrito de coisa parecida. Foi uma surpresa a primeira aparição mas tendo em vista que grande parte do mundo ainda era inexplorado por pés humanos, foi aceito com facilidade, medo e até curiosidade. Mesmo com o longo histórico de agressividade, nunca atacaram ninguém em terra firme, parecia que até evitava chegar muito perto, só mesmo os barcos que recebiam as toneladas.
   Não atacavam para comer, mas por um estranho e inexplicável instinto de vingança; então, impossibilitados de atravessar o oceano por meio fluvial, ouve um grande evasão por trilhos de trens e carroças. Mas eventualmente para o problema alguém inventou um solução e uma nova era de otimismo e bons sentimentos se iniciaram.
   Aquele submarino era exatamente dessa era, bem ali, na virada do século, e pode-se bem ver isso pelo resquício de luxo romântico que se preservava por baixo de remendos de chumbo e os grossos fios de cobre que cruzavam os corredores e salões com arabescos nas paredes e suportes para retratos a Óleo.
   Subiu as escadas e se juntou ao amigo em baixo do sol bem no momento que o sino da igrejinha badalava indicando a hora do almoço.  acabava as atividades religiosas pelo dia e o movimento no cais aumentava ,  vinha os fiéis dando passinhos curtos e apressados desviando dos estrangeiros e estivadores sujos.  Na rua principal que entrava para os bairros residenciais, se aglomeravam com outras pessoas formando uma grossa massa de corpos e vozes que conversavam alto. No meio dele, entrou uma carroça que ia por seu caminho sendo puxado por bois cheios de verduras e frutas, sendo a última mostra de veículo movido a energia animal que se via por alí. Os carros tomavam as ruas, linhas de bonde e super - trens substituíam os cavalos que se tornava item de esporte de luxo.
   La de cima do submarino,  viam a presa belamente vestida, muito gesticulativo , estava cercado por empregados e um imenso carro verde brilhante que mais parecia um besouro com rodas. Os dois lado a lado o analisavam da mesma forma cruel e predatória que aquelas aves observavam os barcos de longe.
  Embaixo de uma marquise, estava Saladino Tulião muito garboso que mesmo no calor trajava um fino terno azul de linho e uma bela gravata de seda brilhante.  Conversava com um outro desconhecido chamado Moisés Ohomem- vestido de forma mais simples porém com igual elegância. De frente a Saladino, assumia uma posição formal quase militar mantendo uma distância respeitosa e levemente inclinando a cabeça como um estranha pré-reverência. Saladino já estava na casa do sessenta e contava com quatro casamento, a cada novo milhão que acumulava, trocava de esposa. Tinha tufos de cabelo branco como algodão na cabeça e patente de avó. De família burguesa, o dinheiro que tanto tinha orgulho e esbanjava, veio herdado dos pais e o investimento milionário em ferrovias e minas de cobre feitas pelo irmão mais novo com que pouco falava por causa de desentendimentos no passado.
     -Não é preciso se preocupar, eu mesmo selecionei o que tinha de melhor.- disse ele- Nem para meus camaradinhas eu dou coisas desse tipo. Veio diretamente da minha plantação particular, tá entendido? Não é de campo não, é de estufa com mais de dois anos secando naturalmente. Se o senhor é entendido de fumo, alguém fino como o senhor tenho certeza que é, vai perceber o gosto muito bem curado da erva. 
     - Agradeço a consideração, vejo que ouvi falar do senhor é verdade.
    Descia pela sua testa gotas grossas de suor que sacava com um lenço.
     - O senhor ouviu? O que exatamente ouviu falar sobre mim?
     - Que é um homem generoso de boa índole e de linhagem de homens igualmente valorosos.- o suor que descia pelo rosto era de calor e nervosismo.
     - Sim, Sim. Venho de uma linhagem de homens valorosos sim. Sabe que por parte de mãe, eu tenho sangue de realeza. O meu trisavô era primo de segundo grau do melhor amigo de um marquês que eventualmente casou com sua irmã. O que fez ele também um marques  e me faz um descendente direto da coroa. Como deve ter sido bons tempos né? Como as coisas andam da até vontade de explodir tudo isso aqui e começar do zero. Naquela época o dinheiro brotava do chão, foi uma época de muita fartura, uma época de heróis e pessoas que queriam levar a sociedade para frente. Diferente de hoje em dia que está todo mundo largado por aí.
    Enquanto Saladino falava, Moises Ohomem só respondia com “ hum e aham”, mas seus olhos e pensamentos estavam voltados para uma das empregadas sentadas dentro do carro esperando só a hora de voltar para casa.
     - Já por parte, de pai me veio foi generais, um astrônomo, três poetas muito do bem sucedidos e heróis de guerra. Claro que eu não poderia decepcionar meu antepassados, então bem pequenos comecei a trabalhar e cada dinheirinho que ganhava, eu juntava. Quando eu comprei o meu primeiro lote de terra, nem casado eu ainda era. Me aconselharam a construir algumas casas para alugar mas achei melhor investir em plantações de tudo o que pode encontrar. Graças ao meu deus que tive boas colheitas, nessa época conheci um homem que veio de sabe-se-la-de-onde, muito morto de fome oferecendo seus serviços. Foi ele que vendia o que eu plantava na feira. Eu, você que me vê agora, assim, me imagina trabalhando igual a pião todo sujo de terra? Pois eu bem fazia. Então assim, o que eu sempre digo é que quem quer consegue. É muito fácil ficar sentado reclamando da vida, quando as oportunidades estão por aí querendo ser conquistadas. Você não concorda?
      - Sim senhor, com certeza.
      - Aí depois disso me casei com minha primeira esposa e logo os filhos vieram e você sabe como é né? Do dia para a noite tudo meio que morre e...
    Nesse momento, Saladino Tulião foi interrompido por um de seus empregados, um homem alto de ombros largos muito branco que trazia nas mãos uma caixa de madeira.
      - Senhor, aqui está.
      - Sim, muito obrigado. Então os dois quilos que o senhor pediu.
    Uma luz estranha passou nos olhos de Moisés e quando se lançou para abrir a caixa de madeira, Saladino disse:
      - Sabe que não faz muito o meu feitio ter um contato muito próximos com quem eu tenho tratos profissionais, se é o que o senhor me entende. Mas tenho que ser sincero e dizer que muito me intrigou quando recebia aquela primeira carta que o senhor me enviou.
     - Não fui que que enviou as carta, na verdade, não sou responsável por nenhum trato
     - Não é? Então o senhor não tem ligações com quem que tenha comprado essa mercadoria?
     - Não senhor, sou apenas um...- parou para pensar me uma boa palavra, mas somas tinha uma- Representante. – tirou do bolso interno do sobretudo um relógio de corda, já não via a hora de o submarino dar o sinal de partida, pois não via necessidade naquela conversa.
Saladino Tulião, passou a mão no rosto pensativo e disse: 
      - Sabe que me muito foi dito sobre números e cifras e principalmente datas – suspirou interrompendo as suas palavras pois não sabia como entrar no assunto. Até ruborizou um pouco se sentindo ridículo, mas não sabendo como desviar para o que de fato queria dizer, apenas disse:
      -Eu fiquei bem curioso para conhecer quem quer que tenha comprado isso – disse apontado para caixa- mas até agora, o senhor foi o  primeiro que se encontrou comigo no meio de todo esse negócio. Ate então achei que o senhor era o comprador e pela quantia que me foi oferecida e as especificações do que queria, eu fiz questão de vir te conhecer. Não sou muito de coisas escritas, porquê além do mais, essa cidade pode parecer grande mas é bem pequena e eu conheço tudo mundo por aqui. - parou de falar e encheu o pulmão, fez um cara pensativa e soltou:   -Quem é que o senhor realmente representa
Moisés Ohomem ajeitou os óculos e disse:
     - Senhor, agradeço muito a sua bondade de ter dado o seu tempo para se em o tratamento pessoalmente comigo, o que eu acho muito generoso da sua parte
Ele sussurrou “ Sim” entre os dentes.
   - Mas ele são muito reservados,
   -Eles? Então é mais de um?
  Moises Ohomem ajeitou os óculos novamente constrangido; tirou no bolso um relógio com a tampa de mola, olhou a hora demoradamente.
     -Senhor, infelizmente a nossa conversa vai ter que ficar para outro momento, já está quase na hora da partida do submarino, mas, foi um prazer em te conhecer.
     Saladino sorriu satisfeito e fez um sinal para a mocinha dentro do carro que logo veio correndo para ele, chegou bem perto e cochichou em seu ouvido; ela concordou com a cabeça e subiu correndo a rampa. Quando voltou, vinha atrás  Milton e Aurélio.
    - Podem levar essa caixa para... Para onde mesmo?
    - Para a cabine do capitão.- disse ele passando a mão de forma distraída em uma corrente escondida dentro da roupa que chamou a atenção dos três.
   Pegaram a carga mecanicamente com os músculos duros de tanta adrenalina que corria em seus corpos e subiram a rampa, deixando para trás Saladino que os acompanhavam com seu olhar bovino e o representante que piscava para mocinha que estava dentro do carro entediada.
   Ohomem tirou do bolso interno do sobretudo uma carteira de couro e de dentro um cheque que entregou ao fazendeiro. Enquanto a boca de Saladino Tulião se abria de surpresa e incredulidade, Moises sorriu tímido para a empregada que arrumava os cabelos com a cara séria. Se voltou para o fazendeiro que admirava os dígitos
    -Na próxima vez, vou precisar de mais, quase o dobro.
    -E quando esse “ próxima vez” vai ser?
    - Mais breve que o senhor imagina.
    - Séria possível resolver isso em um jantar na minha casa?. Discutir os detalhes.
Moises Ohomem deu de ombros e soltou um “ veremos” bem baixinho
                                                                                  ***
   - Tudo nos conformes?
    O outro confirmou com a cabeça e bateu na porta da cabine do capitão. Não demorou muito para ser aberta pelo mesmo, um homem com o rosto queimada de sol e olhos úmidos; pediram licença e entraram.
    Eigil tinha a pele curtida dos tantos anos de navegação em mares quentes, um tom de pele permanentemente escura; já fazia muito anos que quando se olhava no espelho não sabia o que era a sua cor natural e ainda somado  a inevitável calvície que já tinha chegado com entradas na frente e um grande desfalque na parte alta da cabeça, difícilmente os que o conheceram antes de entrar no vida náutica o reconheceria. Tinha um jeito muito meigo de lidar com a vida; de humor fácil, braços para proteger de quem gostasse e sempre receber com cortesia quem quer que fosse na sua cabine para uma prosa e uns dedos de algum destilado de origem escusa.
    Tinha chegado como a maioria dos imigrantes, sem um destino muito ao certo, mais animado pela aventura no meio da mata até ver uma colmeia de luzes a beira mar. Nas suas pesquisas, leu muito sobre a vida selvagem que vivia entre as árvores e as muitas doenças que se escondia na floresta, mas nunca lhe foi sobre qualquer cidade ou sociedade. Imaginava que eventualmente poderia encontrar uma aldeia indígena ou coisa parecida mas nada que se parecia com aquilo. Desceu na estação no meio da noite, sem muito para onde ir sentou em um banco e viu a massiva descarga e recarga de imensos sacos e caixas de dentro dos vagões. Tinha apenas sua sacola com roupas, um pouco de dinheiro local e nenhum conhecimento da língua. Eventualmente conseguiu se instalar em uma pensão tendo na cabeça que seria temporário, alguns meses depois consegui um emprego dentro de um submarino e ele nunca mais saiu dali.
    Estavam em uma sala simples sem ornamentos como tapetes ou quadros. Apenas uma mesa de madeira já muito lascada, umas caixas empilhadas e papéis por todos os lados. Atrás dessa mesa, estava o homem e atrás dele um janelão redondo feito de vidro temperado que dava a visão do que acontecia água. Era impressionante o desperdício de espaço tão necessário dentro de um submarino, só naquela sala podia-se dormir oito tripulantes com folga. O ar tinha o cheiro pestilento de falta de banho e suor e nos cantos das paredes, grossas teias de aranhas se formavam em poderosas colônias.
Milton entrou e colocou a caixa na mesa com as mãos molhadas de suor de tanto nervosismo.
      -Essa é as coisas que Saladino mandou entregar pro'sinhor.
    A porta que levava para a parte interna da cabine do capitão se abriu saindo de dentro um rapaz de olheiras profundas e sombra azulada em volta do rosto de pré barba. Logo saiu e pegou a caixa sendo insolicitadamente acompanhado por Aurélio que trancou a porta atrás de si.
   Os olhos do capitão acompanharam o estranho comportamento dos dois, mas antes que ele pudesse reagir e dizer algo, Milton que não prestava a atenção dos pormenores da situação, acabou tirando da manga um efetivo truque.
    No bolso interno da calça, estava amassado a carta de Rosa. Cozinheira eficaz de lenço no cabelo mexendo as panelas com firmeza. Fazia extravagantes bolos para festa, jantares finos para os burguesas, quentinha para trabalhadores suados e petiscos para turistas no seu quartel general em um sobrado na parte histórica da cidade em frente a uma praça muito bem arborizada. Com o  fogo sempre altos, ela confeitava no balcão tendo a porta do quintal sempre aberta para deixar o calor sair e os bons sentimentos entrarem.  Colecionava amizades, admiradores e amores não correspondidos, mas sempre que recebia uma investida de quem quer que fosse os fazia recuar com delicadeza, e com ele, não foi muito diferente. Esse capitão de olhos injetado de sangue, barba aloirada e parco português que a idolatrava como humano e adorava sua culinária inigualável. 
     Tudo começou quando foi levado na noite de comemoração a São Judas Tadeu, eles se encontraram em meio a travessas e bandejas recheadas de comida. Rapidamente se entenderam e ele quis se deixar ficar. Passava noite apenas os dois, compartilhando a mesma cama e risos na madrugada. Tinha decido largar a vida de capitão dos mares para ficar com aquela sereia e criar raízes; mas antes que pudesse perceber, foi enxotado como se ele não valesse nada. Ficou doente de amor; até que enviou uma carta para ela expondo o que sentia. O que recebeu foi um envelope pardo com três páginas recheadas de uma caligrafia redondinha de professora deixando de modo formal que a relação de ambos não poderia continuar. Milton sabia disso, pois tinha lido o que estava no papel logo depois é sair da casa de rosa que naquele momento estava despreocupada cantando e mexendo as panelas. Era provável que o choroso capitão nem estivesse nos seus pensamentos e dali a uma semana ela nem se lembraria do nome dele.
    Seus olhos úmidos correram pelas palavras; pelo canto, escorreu uma lágrima. Vendo as feições que se modificava durante a leitura Milton teve a impressão que ouvia o coração do homem se rasgar.
Ele calmamente dobrou o papel e abaixou a cabeça na mesa e soltou um soluço.
    Sem perder tempo, Milton se deslocou silenciosamente para o canto da sala para perto de uma placa de cobre chumbada na parede para cobrir um rombo de ferrugem. Com o pé, facilmente deslocou uma peça do chão, exatamente como estava detalhado na carta; na escuridão do buraco, puxou um embrulho de veludo que rapidamente escondeu dentro da calça e suspirou. Seu coração estava acelerado e corria fios de suor para dentro da sua camisa. Então os choques de adrenalina que foram injetados nas suas veias saiu pela sua boca em forma de: -- mas não precisa ficar assim não seu moço-- Sem antes mesmo de se deter.
     - Err dirficil, vorce non entend...
Soltou os soluços tentando completar a frase mas não conseguindo pela voz embargada.
    Vendo ali aquele homem, se sentia constrangido. Não entendia como alguém não via que estava sendo tão ridículo. Mas algo desviou sua atenção dele para o que ele usava embora do pescoço. Foi apenas um rápido reflexo metálico; era do mesmo tipo de corrente que o homem do cais usava, uma trama de fios de metal com algum possível pingente escondido dentro da roupa.
      - Er querirrar que vorce me entendersse. Err muito dirficil. Err amorr sim...
    Passou a mão por baixo da mesa e tirou um lenço e secou os lagrimas, pingos de suor da testa e o que escorria do nariz.
    A única que coisa que Milton queria era que Aurélio saísse de dentro da sala, pois não sabia quanto tempo aguentaria ficar plantado ali sentindo que algo comprimia seu estômago fazendo o ato de respirar ficava cada vez mais difícil. Mas por sorte, a saída de Aurélio não demorou muito para acontecer. Nem viu o rapaz dar as caras, apenas um escuridão líquida que foi trançada quando fecharam a porta
   Saiu pálido como como um boneco de cera. Comprimentos silenciosos foram trocados pelo capitão que escondia os olhos vermelhos atrás do lenço.
      - Ô seu Egil, agora nós temos que ir tá? Mas fica bem tá meu mano.
      -Sas efcharisto , dass Sie mir den pis'mo gebracht haben.- disse ele com a voz embargada
    Apressados saíram da sala para o corredor. Subiram as escadas em passada largas e desceram a rampa esperando ter que dar satisfação para os dois, mas não tinha mais ninguém no cais. Correram para baixo de uma marquise para se proteger do sol cruel e no momento em que olharmos para os lados para ver se tinha alguém perto, ouviram o último sinal indicado que as portas já estavam se fechando e o submarino estava prestes a desaparece na água.
-O quanto você pegou?
-Tudo, limpei a caixa.
    Foi como se tivesse levado um soco no queixo. Milton se sentiu tonto, parecia que não podia respirar de tão apertado o seu peito ficou. Pós as duas mãos na cabeça em desespero quanto sentia que o chão estava prestes a se abrir e o engolir vivo.
    Vinha para ele imagens do São Dimas; uma fortaleza construída a alguns séculos em uma pequena ilha perto da costa. foi transformado em um imenso presídio enegrecido pelos incêndios ao longo dos muitos anos. Sempre que passava por perto e via o seu aspecto de colmeia, sentia subir um calafrio pela espinha. Era ali que os dois iriam parar se fossem pegos roubando de alguém como Saladino Tulião. Quando Aurélio propôs todo esse esquema a alguns anos, sabia que eventualmente esse dia chegaria, mas achava que já teria se metido em outra coisa para se fazer; mas a propostas de fazer dinheiro roubado pequenas quantidades de tabaco para misturar com outras coisas e vender como cigarro de importado era muito boa. Vinha pra ele um dinheiro miúdo, porém constante e de forma confortável.
     -Não tinha como pegar um pouquinho, estava tudo dentro de um embru... Foi interrompido por um gesto de Milton.
     - Você tem noção que vão nos culpar e revirar o continente atrás da nossa cabeça?
     - Eu não sabia o que fazer, fiquei nervoso e... quando perceber já estava fora da cabine. Não tinha como pegar só um pouquinho, ou era tudo ou nada.
    - E por que para você a opção certa era tudo?
Milton sentia que o mundo estava prestes a desabar sobre a sua cabeça. As pernas estavam bambas e tudo dentro do seu corpo começava a fervilhar só de pensar no que ia acontecer com ele. A Imagens de policiais entrando no seu quartinho para joga-lo no fundo de uma masmorra pelo resto dos seus dias brotavam na sua cabeça.
      - Mas você tem que entender que só esse pouquinho de dinheiro para podermos iremos embora. Se isso aqui tudo for vendido, antes mesmo que alguém perceba alguma coisa, já vamos estar longe.
      - O problema é que vão perceber logo, se já não perceberam.
      - É difícil fazer contato com a terra durante...enquanto eles estão lá em baixo
Não tendo resposta de Milton, Aurélio se preparou para retomar o que dizia quando foi cortado:
       - isso aí é muito ridículo, temos um outro assunto para resolver.
      - Tipo a polícia?
Milton soltou um suspiro.
      - Precisamos desaparecer.
     - Você está sendo muito precipitado e dramático.
     - Não consigo imaginar outra forma de agir; talvez se formos na casa dele e devolver o embrulho talvez as coisas não fiquem tão ruim.
     -Vamos esperar, dependendo do que acontecer, bolamos um plano de fuga.
    - Fugir para onde? Acho que nem se sumirmos no meio da noite adiantaria alguma coisa. Mas sabe o que precisamos fazer? Vamos nos livrar disso o mais rápido o possível. Vamos jogar em alguma lixeira e esperar pelo melhor. Se a polícia nos achar não vão ter flagra e nem provas. Aí sim vamos poder fugir.
     - Mas ainda falta dinheiro para sair. O que temos é muito pouco.  Nas pesquisas que fiz, é preciso ter o dobro, senão quatro vezes mais; ou você acha que gado é barato?
     -O importante é se livrar disso.- quando disse isso, espiou a rua para ver se nada os perseguia ou ouvia a conversa.
     - Não é melhor vender?
     - É muita coisa, ninguém compra tanto assim.
     - Divide os pouquinhos e vai distribuindo pela cidade
     - Fazer isso é a mesma coisa que sair gritando que sou culpado. Se for vender, tem que ser um pouco e o resto precisa ser jogado fora.
Por um momento, Aurélio não teve resposta.
      -Agora você entende o que você nos meteu.
      - Calma homem, você está sofrendo por antecipação, respira fundo. Eu acho covardia jogar isso aqui fora. Você mesmo disse que tinha uns tantos conhecidos; e aquela sua amiga rica que mexe com essas coisas?
Agora foi a vez do Milton não ter palavras.
      - Eu preciso pensar nisso com calma
Aurélio riu e concordou com a cabeça por finalmente ter alguma razão. Já Milton, não tinha vontade de sorrir.

Pois a Antiga Ordem Já PassouOnde histórias criam vida. Descubra agora