Logo depois de saírem de baixo da marquise, sem muito saberem bem o rumo que tomar. Foram para o abrigo mais perto e seguro, como um pequeno mamífero que se esconde a noite dos predadores. Viraram para a avenida principal e rumaram para a parte histórica da cidade de edifícios históricos se tinha muito pouco, só alguns como o teatro nacional, algumas igrejas e monumentos aos heróis daquela terra. O resto era apenas casas velhas e comércios.
Em frente a uma praça com arbustos aberto em flores estava a casa da Rosa. O sobrado simpático que de longe já se ouvia o som das violas e o vapor da cozinha que escapava pelas janela; era o sinal que era a hora do almoço.
Naquele dia teve arroz e efó embaixo da sombra de uma árvore muito bem acomodados em uma mesa de metal um pouco afastados dos outros.
-Eu acho que seja uma boa ideia tentar alguma coisa nela, mas o problema é que não é nada garantido e ainda tem a possibilidade dela nos delatar.
- Há quanto tempo você a conhece?
- Já a alguns anos
- Ela algum momento já se mostrou capaz de fazer uma coisa dessas?
- Na verdade não, ela é muito reservada... – Milton pôs a mão no queixo de forma pensativa- Na verdade não sei bem se ela já delatou alguém ou não. O que se vê cara a cara é bem diferente do que ela de fato é por trás.
- Ela está envolvida com essas coisas de tráfico e máfia?
- Eu não sei bem se está ou não, e é nisso que mora o perigo. Como você não quer se livrar logo disso, ela acaba sendo a nossa única saída o talvez a carimbo no passaporte para o São Dimas.
Só de ouvir esse nome, Aurélio levava um choque. Suas mãos estavam suadas e ele sentia o coração acelerar de desespero. Estava profundamente arrependido do que tinha feito; pois movido por ganância e irracionalidade tinha condenado os dois. É claro que poderia fazer o que Milton tinha dito para fazer e jogar o pacote no lixo e esquecer o que tinha acontecido, mas mesmo assim, as consequências viriam do mesmo jeito. Talvez menor, talvez maior, não sabia, o que lhe restava era esperar pelo melhor.
Sofria de arrependimento instantâneo, do mesmo que sentia quando era criança e quebrava uma janela jogando bola na rua ou quebrava alguma coisa de algum amigo. Não era dor moral, mas sim uma indisposição para o castigo. E da mesma forma de como era muitos anos atrás, desejava poder voltar no tempo, retroceder só um pouco e refazer a realidade.
Ou gostaria simplesmente de poder avisar o seu eu do passado no momento que entrou na sala escura, sentindo o cheiro oleoso para deixar as coisas como estavam. Mas dos fundos do vale sombrio de sua imaginação, Aurélio submergiu com algo que tinha acabado de se lembrar.
- Sabe que tenho algo para te contar, sabe aquele homem que entrou comigo dentro da cabine?
Milton franziu o cenho pelo corte de assunto abrupto
- Eu já sei o que você vai falar, mas antes me deixe dizer o que eu tenho pra dizer. Então, sabe aquele homem que apareceu na porta? Ele trabalha na manutenção de algum tipo de maquinário no fundo do submarino e enquanto eu estava lá, ele me disse que as vezes...—Parou para encontrar as palavras certas- Ele disse que a noite o capitão se junta com outros tripulantes na cabine para cultuar alguma coisa, algum tipo de ídolo ou entidade. Ele disse que viu sombras por baixo da porta e uma fumaça vermelha com cheiro de podre. Tem vezes que ele mal dorme pelos gemidos.
Levou um tempo até Milton digerir o que tinha acabado de ouvir. No meio disso os ficaram se encarando em silêncio, enquanto a música rolava e as pessoas continuavam a chegar. Do meio da neblina de seus pensamentos e seus olhos vidrados, o que saiu de sua boca foi:
- Que tipo de gemido?
-Ele não disse, mas falou que esse fumo é para essas sombras; eles dão como oferenda. Percebeu que tanto o capitão e aquele advogado tinham um cordão estranho no pescoço? Então, esse é o símbolos deles.
Milton se lembrava de alguma coisa assim.
- Que em troca eles recebem indicações onde achar tesouros nessas ilhas perdidas por aí. E disse mais, que as vezes o submarino para e um grupo sai para caçar alguma coisa. Mas ele não pode ver porque fica trancado lá nos maquinários e só as vezes pode sair.
-Eles? Mas de que ele estava falado?
- Ele não deu nomes
-Esse idiota só estava querendo te assustar, e você como é, acreditou.
-Olha, sei não. Quando me contava, pareceu bem verdade. E nem tenta querer disfarçar que você também percebeu alguma coisa estranha. Já parou para pensar que pode acontecer alguma coisa com eles?
- O que pode acontecer? Isso aí é tudo mentira.
- A entidade pode ficar com raiva e descontar neles por não ter o que oferecer. Espíritos são muito vingativos e você sabe muito bem disso. Se lembra o que aconteceu com o Capitão Nilsson quando ele entraram no terreiro da Matilde quebrando tudo no ano retrasado?
- isso tudo aí é ridículo e além do mais, temos muitos outros problemas para resolver.
Aurélio deu de ombros desistindo de insistir no assunto pois já sabia como Milton era. Ambos voltaram ao silêncio cada um absorto no próprio pensamento. Após ter dado a hora do fim do horário de almoço e terem se despedido de Rosa que confeitava um bolo de casamento, os dois foram para a rua.
De novo sem rumo lentamente voltaram andando para o porto conversando baixinho para o que fariam de imediato. Mesmo contra, Milton acabou cedendo as insistências de Aurélio em ir imediatamente para a casa de sua amiga. Não sabia se ela o receberia e tinha certeza que se recebesse seria uma situação extremamente constrangedora pois não marcou horário e nem avisou de apareceria na sua porta. Infelizmente ele não sabia como essas coisas de etiqueta funcionavam na vida real; na verdade nem Milton sabia muito bem como funcionava.
Não tendo muito o que fazer, pegaram o caminho para a praça de Gilgamesh quase do outro lado da cidade. Cercado por muitas palmeiras altas e edifícios antigos , mesmo de longe, dava para ver a ponta de cobre das asas do monumento e as folhagens das árvores que contornava os tetos das casa. Podia-se dizer que era um ponte de referência daquele bairro. A muito anos quando tudo ainda era mato selvagem, foi ali que foi construído uma torre que futuramente serviria como a biblioteca imperial e um centro de estudo de astronomia. Mas os anos se passaram, o centro foi demolido e para não deixar um espaço vazio, apenas colocaram uma das esculturas que acharam nos escombros em cima de um pedestal e uma poça de bronze na base com a data da fundação da praça.
Quando chegaram, viram crianças brincando em volta de uma fonte seca enquanto os pais estavam sentados nos bancos vigiando o movimento de cada uma delas conversando as amenidades mundanas
Atravessaram a praça e entraram em uma rua estreita; ambos pararam na frente do um paço colonial muito bem conservado com colunas, arabescos nas paredes, vitrais e leões de pedra que estavam da época da construção original.
Admiraram a tinta recém aplicada na parede toda a imponência de que era morar em um lugar desse. Nos dois o efeito foi o mesmo, se tinham o coração pesado pelas consequências do que fizeram, caía mais uma camada de inferioridade diante ao que estava as suas frentes.
Tocaram a campainha e logo a porta foi aberta por uma mulher na casa dos cinquenta anos, baixinha, atarracada, de lenço na cabeça com as mãos sujas de farinha. Vestia um conjunto de blusa e saia estampadas com cores muito forte. De dentro da casa, ouvia-se o barulho de panelas na cozinha.
- Gostaria de falar com a dona Vasquos, ela está em casa?- Perguntou Milton forçando simpatia
- E quem são os senhores?
-Eu sou amigo, ela está em casa? temos coisas importante para falar com ela.
- Desculpa, infelizmente ela só atende com hora marcada
A mulher olhou os dois da cabeça aos pés em silêncio. O pobre do Aurélio sentiu as orelhas e o rosto ficarem quentes de vergonha. Tentava se manter o mais ajeitado o possível. As roupas sempre limpas e passadas a ferro; os sapatos sempre engraxados, mas mesmo com todo cuidado, o tecido desbotava, esgarçava e a sola se gastava. Não tendo jeito, apenas levantava a cabeça e tentava ter a postura mais régia o possível.
De funda da casa ouviram “ Sandrinha, quem é?”
Sem dar resposta para os dois, entrou um pouco e do corredor mesmo ouviram ela dizer “ Ô senhora, tem dois homens aqui quero falar com a senhora” e de dentro ouviu- se “espera um momento que eu já estou indo”
Com vestido farfalhante, secando o suor da testa e envolta por um avental também coberto por farinha, quando a dona da casa viu quem era, sorriu e veio de braços abertos receber os dois
- Milton Onofre; faz muito tempo que não te vejo. Por que esteve tão sumido?
-Sabe como é né senhora? A vida faz dessas com a gente.- engoliu em seco constrangido da mesma forma que imaginou que estaria e continuou- A senhora está ocupada agora?, queria ter uma conversinha; negócios, queria falar de negócios.
-A vida né?- ela riu de forma surda para os dois e disse: -Entrem por favor.
Então Aurélio estendeu a mão e a cumprimentou
- Meu nome é Auréliano, ao seu dispor
-É um prazer em conhecê-lo também- Disse apertando a sua mão e logo se virando para entrar. Sandrinha de muita má vontade deu espaço para eles passarem e fechou a porta com um estrondo.
-Podem sentar- disse a dona da casa apontado para o sofá logo depois de passarem pelo corredor e entrarem na sala de visitas; ela se virou para sua empregada e falou baixinho de uma forma íntima.--Vai na cozinha, que eu acho que já está queimando. – Sandrinha entro para a cozinha correndo já armada com uma colher de pau.
Meio tímido Aurélio sentou no amplo sofá com olhos doces voltados para a senhora que se esforçava para dar um jeito no cabelo que escapava do turbante. Estava descalça usando um vestido cozido por ela mesma, feito de viscose cor turquesa estampado de flores vermelhas.
Já Milton admirava a beleza e finura do ambiente. Grande parte das características da época em que a casa foi construída, ainda se mantinham para dar um charme na decoração; o que não teve concerto foi arrancado e jogado fora. O chão de madeira foi substituído por ladrilhos no padrão xadrez, as portas e batentes viraram serragem que forram o chão de galinheiros, os oratórios infestados de cupim foram partidos por Sandrinha com um machado. Todos os quadros e rosários foram dados para quem queria; mas o santos ficaram, todos ganharam uma pintura nova e a maior parte deles foram distribuídos pelas igrejas ficando para trás o Arcanjo Miguel e o São Bartolomeu (pois era filha de Oxumarê ). Ambos estavam na sala que junto com uma imensa aquarela feita por mãos infantis; o que configuravam as únicas decoração móveis deixando a beleza pelo belo papel de parede e os arabescos delicados no teto.
- Desculpa a minha aparência, estou presa em um compromisso muito importante hoje.- disse sentando largada em uma poltrona na frente dos dois. - Hoje é o aniversário do meu filho; vocês conhecem ele?
Em uníssono - Não
- Daqui a pouco ele volta da escola. Esse menino é uma benção para mim, foi ele que pintou-
Disse apontando para o quadro. Uma paisagem de montanhas pedregosas cobertas de gelo, uma casinha de água furtada e uma cerca de pau que contornava o perímetro de um pequeno jardim florido. Todo pintado com cores forte, o vermelho do telhado era um Vermelhão cor de sangue, as montanhas era cinzas com sombreados azuis e brancos, os verdes da vegetação é o verde que se cresce por ali, uma cor brilhante, tom de jade, o que indica saúde. A paisagem era nítida e incoerente pela presença de neve, árvores floridas é um céu estrelado mesmo que tudo o que acontece indicasse ser um dia ensolarado. Foi feito em colaboração com as filhas mais velhas que fizeram o esboço antes de serem enviadas para o internato.
-Não sabia que a senhora tinha filhos.
-Tenho três. As mais velhas estão estudando em Iguaràn e o meu menino já está vindo do colégio.
A senhora encontrou Emiliana e Evangeline por conta própria vivendo em um trapiche com outras crianças selvagens comendo lixo e ao dará de deus. Gêmeas de cara idêntica eram a figura encarnada de Ibeji na terra. Quando ela entrou na casa acompanhado de suas beatas para distribuir pedaços de pão, todos os moleques fugiram pelas janelas deixando as duas sentadas dividindo um pedaço de carne de aparência suspeita . Tinham a cabeça raspada e sinais de doença nos olhos. Sabia que crianças pequenas até certa idade eram resgatadas e adotadas, mas essas duas tinham a pele preta como a senhora e se fossem para serem vendidas seriam para a servidão. No momento que as viu pegou as duas pelas e levou para ficar consigo.
Já o mais novo, o Joaquim, era filho de um amigo que perdeu a esposa para a bebida e em dia de desgosto se jogou em frente ao trem da estação onde trabalhava. Não tinha nada, apenas um menino que de tão pequeno não se lembrava dos pais pela pouca idade. No momento que soube do acontece foi de encontro com a criança, após fazer pergunta os vizinhos descobriu que o garoto estava sozinho no mundo. Fez questão de pagar um missão pela alma do pai e levar a criança.
-Senhora, acho que já está pronto. – apareceu Sandrinha na porta com a colher de pau em mãos e o rosto sujo de chocolate.
- Já esfriou?
-Já está morno.
- Agora é só desenformar, precisa de ajuda?
- Não senhora.
Sandrinha soltou uma gargalhada e estalou os dedos. Entretida com as atitudes da empregada, se virou para as visitas.
-Então, que negócio trás vocês aqui?
- A senhora, se lembra de que alguns anos me disse de um negócio de cigarros e me ofereceu um trabalho?
-Lembro sim, ainda está interessado na proposta?
- Não é bem isso, nós trouxemos uma coisa que eu acho que a senhora vai se interessar – se voltou para o amigo- Não é mesmo Aurélio?
Ele apenas concordou com a cabeça muito intimidado com o que o cercava. As mãos da senhora foram automaticamente para o turbante sem que tivesse consciência disso e soltou um “Uhum” e após alguns segundos mergulhando nos próprio pensamentos, disse:
- Tudo bem, vamos tratar disso no escritório- e se levantou com um salto- é lá em cima, por favor me acompanhem.- e para a cozinha gritou :
-Sandrinha, vou estar no escritório.
E um “ sim senhora” foi ouvido em meio ao som de panelas.
Subiram a escada e seguiram por um corredor forrado de papel de parede e tapetes grossos hermeticamente limpos. Passaram por portas fechadas e mais aquarelas em molduras pretas. Entraram na última porta à esquerda e ela logo foi abrindo a as cortinas para deixar a luz do dia entrar.
O escritório era simples e limpo. Cheio de prateleiras repletas de livros com as letrinhas douradas na lombada. Na soleira das janelas, vasos de plantinhas saudáveis com folhas verde brilhosas e diferente de todos os outros cômodos que passaram, nas paredes em vez de aquarelas, tinha faunos e mouros pintados a óleo.
A senhora sentou atrás da uma mesa perfeitamente organizada, pegou uma caneta e pôs na sua frente mesmo antes de raciocinar; era automático.
Desde que começou a subir as escadas e Aurélio viu a limpeza do chão, hesitou em pisar com o sapato sujo. Não queria estragar uma belezura dessas com a imundície da rua, mas vendo que a dona não se importava, dava seus passos mas com um imenso remorso no coração e calculando qual seria o preço dos tapetes. Entrou na sala e sentou na cadeira que lhe era indicada; uma bela peça forrada em brocado que provavelmente foi parte da mobília original daquela casa. Olhou para o lado e percebeu o ar de indiferença do amigo, juntou as pernas delicadamente e ajeitou postou para ter a aparência elegante de alguém que timidamente acabou de pousar alí.
- Então, o que vocês têm para mim?
O embrulho foi tirado da bolsa e posto na mesa.
Com os dedos ligeiro, desamarrou a fita e de dentro tirou uma mistura marrom de folhas secas moída. Para Milton, mais se parecia os temperos vendido na feira em sacos abertos ao ar livre. Com o dedo em pinça testou a textura e levou ao nariz para sentir o cheiro.
-Isso não é só tabaco, tem ganja e mais alguma coisa que não sei. – pegou mais um pouco do saco e pôs na boca - Acho que é folha de pimenteira, o que não seria estranho se fosse, já vi isso acontecer antes. Enfim senhores, de onde veio isso, você plantaram ou o que?
Milton já tinha uma mentira na ponta da língua, alguma coisa sobre um novo negócio que ele estava montado, mas ali na frente dela, estava totalmente desarmado.
-É complicado sabe...- ele começou, mas foi brutalmente cortado por ela.
-Sei muito bem. Normalmente não repasso coisa roubada. Mas estou interessada em ficar.
As pernas de ambos se amoleceram de desespero.
- Mas não é roubado não senhora.
- Eu conheço a erva daquele velho gordo, qual o nome dele mesmo? Se não estou enganada, acho que é Salgadinho alguma coisa. Não é a primeira vez que esse tipo de coisa vai no meu colo, normalmente eu evito, mas acho vou ficar sim.
Sem dar direito a resposta, da ponta da mesa pegou o sino e tocou. Na porta brotou Sandrinha.
Leva isso aqui para o meu quarto e já pode vir servir.
- Senhora, o Leocádio já chegou com o menino.- disse a empregada
- Pode mandar o Joaquim para o banho.
- Sim senhora- e voltou correndo para o primeiro andar.
De dentro do vestido tirou um bloco de notas preso por um clipe de metal. Molhou o polegar na língua e começou a contar as notas . Aurélio estava impressionado pela naturalidade com que ela manejava dinheiro.
Pôs as notas em um envelope que tirou de dentro de uma das gavetas da mesa e entregou a Milton que estava encurvado pela vergonha de ter sido pego, se sentia humilhado, diminuído com os olhos baixos querendo apenas ir embora.
- Se vocês precisarem de um lugar para ficar por um temp...
A porta foi aberta por Leocárdio que entrou trazendo um bandeja com pratos e talheres envoltos em guardanapo. Era um homem alto de feições duras e a pele cheia de veias de tão branca; tinha os olhos sanguíneos e cicatrizes no rosto. Pousou a bandeja na mesa e logo se retirou de cabeça baixa.
Sandrinha vinha atrás com o bolo fatiado e um bule de café fresco. Na frente de cada um, foi posto as fatias e o café servido em xicaras brancas.
A senhora tomou um gole na xícara e cortou um pedaço de bolo e levou a boca. Aurélio logo a seguiu abrindo o guardanapo cuidadosamente, o garfo era feito de cobre com pequenos detalhes de conchas e desenhos delicados de ondas. Passou a ponta dos dedos para sentir relevo, mas o que sentiu foi o ódio e remorso prensado dentro de si. As pontas dos seus dedos tocavam uma peça tão bonita que mesmo que trabalhasse toda a vida, difícilmente poderia comprar. O que tinha de mais amargo dentro de si veio para fora, um caldo que marinava por anos. Um sentimento infantil de ter sido injustamente jogado em um lugar que não merecia pertencer. Se achava inteligente e de muito bom gosto para não “ ter”. Na sua cabeça achava que dinheiro e prosperidade era um prêmio para ações certas. Ainda tinha por baixo da pele a culpa cristã, um sentimento de “ tem algo de errado em mim”. Como Milton, não acreditava em Deus, mas a figura de tudo provedor ainda se mantinha. Em momentos de desespero perguntava “ ai meu Deus por quê?” nada respondia e sabia que nada responderia mas mesmo assim se apegava a esse pedestal vazio.
Era o desejo de ter, queria mais que conforto, queria o que ele achava que o mundo lhe devia. A dívida que ele mesmo calculava quando ficava sozinho e depois de ter as os números ia para a fantasia. O que de fato queria? Já não era mais sobre posses ou oportunidades. Era o vazio que o consumia e ele achava que sararia quando estivesse bebendo vinhos importados discutidos cifras na casa dos milhões.
Mas para entender como isso cresceu, é preciso parar os acontecimentos atuais e voltar na vida de Auréliano.
Logo após a morte da mãe e as primeiras dores de solidão começaram a bater, se entretinha seus dias entrando nos casarões vazios e correndo pelos salões decorados admirando tudo o que tinha sido deixado para trás. Os belos moveis, as cortinas bordadas a mão, o vazio onde um dia esteve os quadros, admirava que tudo fosse tão grande e tão reto. Quando anoitecia e não podia mais admirar, sentava nas poltronas e se envolvia pela sensação de segurança da riqueza sem medo de ser pego pela moléstia que levou todos a fugir dali e nem acordar apanhando de um policial.
Ouvia o ratos correndo no assoalho, o vento que batia as janelas dando a impressão de que ainda havia os antigos moradores com ele; mas não se incomodava, achava gostoso essa sensação de melancolia que as sombras e o indício que os mortos deixaram para trás lhe proporcionava. Se sentia acolhido como se tivesse ainda com a certeza que se algo errado alguém estaria ali para ajudar a consertar.
Em uma dessas corridas de um desses casarões, entrou na salas de jantar quando ainda as últimas luzes do dia desciam pela comprida janela. Trazia na mão um embrulho de pedaços de pão para cear na mesa de jantar de dez lugares. No dia anterior tinha comido algumas frutas dada pelos feirantes na casa da frente, iluminado por vela de sebo que pegou no cemitério em castiçais de cobre e ouro deixados para trás. Hoje comia melhor pela venda do castiçal encontrado.
Entrou no salão e atrás da mesa comprida estava pendurado retrato a óleo de algum fazendeiro fundador de toda aquele império. Pintado com cores vivas o homem de cabelo a escovinha e um bigode poderoso olhava duramente para ao horizonte enquanto cavalos corriam no fundo em uma paisagem escura de montanhas pedregosas. O homem estava vestido como um militar do século anterior com dragonas e medalhas levantando o braço direito igual a um Cesar comandado homens a guerra.
O pequeno Aurélio esquadrinhou cada pincelada da obra. Ele viu a pose e desejou que a pintura fosse um espelho e que ele fosse o poderoso fazendeiro. mas olhava para baixo e via as roupas esgarçadas, desbotadas de tanto lavar, os pés descalços e se sentia miserável. Mas dentro de si, ali, uma semente foi plantada com sucesso.
- Então foi como eu imaginei, aquele ali é passado para trás por deus e o mundo. Mas tem que ter cuidado, você não tem noção no que se meteu. Mas digo logo que se a polícia chegar em mim ou algo tentar me incriminar, não vou hesitar em mandar os dois para o São Dimas. Espero não ter que repetir isso já que vocês dois sabem muito bem como as coisas funcionam.
Mesmo não tendo participado ativamente da conversa por estar muito afundado com as suas feridas, Aurélio sentiu o golpe tanto quanto Milton que retesou seus músculos. Pôs um pedaço de bolo na boca e sentiu nas costas as consequências de suas ações. Perto dos dois que conversavam, ele envelheceu uma década.
Se despediram da senhora com um aceno respeitoso e saíram para a calçada. Pelas poucas próximas vezes que passaram perto daquela rua, viram o paço com uma nuvem em cima, as tintas bem aplicadas e aura de limpeza que só a riqueza tem, tinha um tom sombrio de pós morte ou muito mais tarde na vida quando se lembravam daquele momento, era sempre colorido por uma palheta de maldição, uma sensação de mal agouro que fazia os pelos do corpo se arrepiarem.
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Pois a Antiga Ordem Já Passou
FantasyApós cometerem um crime, Milton e Areliano precisam lidar com o peso da propria consciência enquanto planejam uma fuga da cidadezinha litorânea onde moram. Com tempero de literatura gótica " Pois a antiga ordem já passou" trata de misérias e delíci...