V

4 0 0
                                    

Acordo assustada, pouco antes das quatro da manhã. Peguei no sono e devo ter tirado um cochilo de no máximo meia hora. Guardo todos os papéis embaixo da cama e renovo em mim a consciência de que preciso de um outro esconderijo que não seja tão óbvio. Então, me aninho entre os cobertores e me convenço a aproveitar os poucos minutos restantes para descansar. Preciso dormir ao menos um pouco. O sono vem rápido, e me entrego a ele quase que com desespero.

Sinto como se segundos houvessem passado quando minha mãe me acorda. Já passam das seis, e claramente estou atrasada. Mas antes que eu me levante, ela estende a mão sob o meu peito e me impede de sair da cama.

- Você não vai à Academia hoje. - diz, severa. - Para todos os efeitos, você teve uma profunda dor de cabeça a noite toda, ocasionada pelo stress, e não conseguiu dormir. Um médico virá ver você em cerca de duas horas para checar o motivo da falta. Você dirá a ele que não se sentiu bem e que acredita que só precisa descansar e que isso é normal aos grandes prodígios acadêmicos. - completa a ordem, sem tirar os olhos de mim. O peso daquele olhar me prende à cama. Não sou capaz de dizer uma palavra sequer. - Depois, você pode continuar fazendo o que quer que estivesse fazendo esta madrugada. - solta, já virando as costas para mim.

- Mãe, provavelmente eu... Eu não deveria fazer isso. Vai ser ruim para as minhas avaliações e eu não pos... - começo, e sou prematuramente interrompida.

- Você provavelmente recebeu alguma coisa do seu pai e provavelmente quis seguir em frente com isso, não foi? - pergunta, e eu mordo os lábios. - Eu sempre soube que ele jamais te deixaria alheia a isso tudo e que isso claramente prejudicaria você.

- A isso o que, mãe? - pergunto, sem pensar direito.

- Bom, você vai descobrir. - responde, desabotoando o blazer vermelho. - Eu só quero que saiba, Sophia, que nenhum de vocês dois é capaz de me esconder nada. Eu conheço vocês melhor que a mim mesma. Muito me surpreende que tenha tentado. - diz, decepcionada, virando-se de costas e me mostrando uma pequena cruz. Como a minha. - E que por mim, você enterraria todas essas pistas ou seja lá o que for que ele te deixou e esqueceria isso. Eu já cometi o erro que você está cometendo. E a última coisa que eu quero é te perder também... Mas há decisões que eu já não posso tomar por você. - continua, enquanto alinha o uniforme novamente. - Por mais que os resultados da sua autonomia me decepcionem.

Então, sai do quarto e eu me jogo com a cabeça no travesseiro e tenho meu grito abafado por ele. Só posso estar sonhando. Minha mãe, a pessoa mais devota do Estado que eu já conheci tem uma marca que representa algum tipo de organização secreta que vai contra tudo o que ela acredita. Ou o que eu achava que ela acreditava. Ela era perfeita. Perfeita. Há histórias de seu tempo enquanto aluna e de feitos que ela protagonizou desde o primeiro Ciclo. Ela era o símbolo de que tudo aquilo funcionava. E agora, além de tudo, está chateada comigo pelo segredo. Mais chateada do que eu já a havia visto.
Ontem, lendo as anotações do meu pai, descobri que houveram alterações na forma como a História nos foi ensinada. Eu já sabia, todos sabem, na verdade, que alguns fatos foram omitidos pelo nosso próprio bem. Mas ninguém nunca nos disse que os fatos que nos foram ensinados, foram alterados... Que houveram conspirações, guerras e assassinatos no lugar daquilo que aprendemos como acordos de paz e movimentos pela vida. Há um grande feriado que chamamos de "Dia da Restauração"... É uma festa em que celebramos nossos Núcleos. Na Academia, o Dia da Restauração é ensinado como uma reunião entre vários líderes importantes, que aconteceu há trezentos anos, em que eles decidiram ser o melhor para nós reorganizar tudo e ensinar às pessoas uma nova maneira de viver. No fim, eles assinaram um tratado e aquela foi a primeira revolução que não derramou sangue e não nasceu no Caos da guerra, mas do reconhecimento de que precisávamos dela. Mas o que aconteceu, na verdade, foram inúmeros bombardeios e invasões aos que se opuseram. Pessoas foram mortas, torturadas e presas. Filhos separados de suas mães. Não se tratou de um dia e uma mísera reunião, de vinte e quatro horas... Mas de vinte e quatro anos. Líderes assassinados, lugares tomados a força, construções derrubadas, livros queimados e só no Arquivo há o que realmente aconteceu porque o Estado protege sua própria história longe dos nossos olhos. A data marcada como o Dia da Restauração é nada mais nada menos do que o dia do bombardeio de um lugar chamado Jerusalém, último reduto daqueles que não se renderam. Era visto como uma espécie de solo sagrado, algo do tipo... Então ninguém atacou até o último segundo, por questões políticas. Havia um povo, a favor ou não, assistindo a tudo aquilo e tocar num de seus lugares sagrados seria potencialmente trágico. Porém, nada resiste por tempo diante da determinação humana. Quando os que lá estavam caíram, não havia mais como resistir.
Acredito que a Cruz seja o sinal por isso. Há uma lenda que diz que mesmo com a cidade em chamas, uma cruz de madeira permaneceu intacta sobre os escombros. Como um último sinal de esperança. E esta é só uma das histórias. Há registros de que uma moça foi vista correndo com um véu preto e um grande livro, e que ela entrou numa caverna e nunca mais saiu de lá, porque ainda espera redenção para o seu povo. Há também uma espécie de lenda que diz que o lugar foi preservado, e que enviam prisioneiros para serem mortos lá. Não há como saber o que realmente aconteceu.
Os Jogos, competição anual entre as Academias, que rotativamente, a cada três anos, disputa a respeito de uma coisa diferente (esportes, artes ou ciências) é a concretização de uma política chamada "Pão e Circo". Suprem as necessidades, nos divertem e nos distraem. É o único período do ano em que podemos ser diferentes. Nenhuma Academia nunca ganha, de fato, os Jogos, porque a superioridade não é saudável e pode causar revolução. Mas nos deixam competir pelo gosto da luta.
Como fazem na Academia. Todos nós vamos ganhar os mesmos subsídios, independente das funções. O que muda é só o prestígio, o ego inflado pelo qual lutamos. Pelo qual eu luto.
As evidências faziam tanto sentido que inclusive eu, devota fiel da Lista de Ouro da Academia, acordara sem vontade de ir até a Academia. Porque soube, inclusive, que a própria Lista de Ouro é a versão reformulada de uma lista de cientistas contrários a Revolução, mas que por terem mentes brilhantes que ninguém mais tinha e pesquisas que só eles seriam capazes de continuar, foram deixados vivos, sendo vigiados dia e noite, com as famílias sob a tutela do Estado. E foram obrigados a repassar seus conhecimentos: os primeiros Instrutores.
Como meus pais souberam disso tudo e só continuaram... Trabalhando? O Estado, ao que parece, mente, manipula, destrói e adequa tudo ao seu funcionamento. Dizem que somos iguais. Nos criam desde os primeiros meses de vida na Academia para sermos úteis da melhor forma possível. Nos obrigam a competir mas nos fazem sentir como se fôssemos iguais. Ninguém é verdadeiramente individual aqui. Temos as mesmas casas, as mesmas roupas, os mesmos comportamentos, ouvimos as mesmas coisas e somos padronizados para sermos pessoas calmas, prestativas, gentis e... Perfeitas. Nossas famílias tem o formato que eles querem, temos a quantidade de filhos que eles estipulam... Eles nos dizem quem somos desde que nos entendemos por gente e então, nós aceitamos. Não trancamos as portas de nossas casas por que algo que está nelas pode ser solicitado e então um Agente pode entrar. Não escolhemos nossas profissões porque o sistema nos guia a utilização máxima de nossas habilidades. Não somos integralmente criados por nossos pais porque eles precisam dedicar seu tempo a outras atividades e porque precisamos aprender sobre quem devemos ser. Nós temos horários para comer, para dormir, para ir ao banheiro e até para caminhar por aí e nunca questionamos nada porque acreditamos ser estar sendo cuidados. O organismo se auto alimenta em prol de dois ou três privilegiados enquanto o restante é manipulado e levado a crer que está sendo recompensado, protegido, até... valorizado. Eles roubam o que temos de mais precioso: tempo, liberdade e afeto. Controlam o que vamos fazer, como, quando com quem e onde. E aceitamos porque acreditamos ser o melhor para nós. E almejamos ser, um dia, os que alimentam ou que comandam a máquina. Instrutores são tão especiais porque sem eles ninguém é convencido.
E tudo o que eu quis, a minha vida toda, foi ser a peça principal deste teatro de manipulação.

Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Aug 01, 2019 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

Santa Sophia Onde histórias criam vida. Descubra agora