IV

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Tiro os blocos de nota da caixa, um a um, e noto que estão datados. Papéis diferentes, canetas diferentes, mas o mesmo traço de caligrafia. Hora uma escrita mais cuidadosa, hora mais despojada, hora cansada. Meu pai dizia que as letras escritas à mão diziam muito sobre nós e sobre nosso estado de cansaço mental. Vendo aquilo tudo, notei ser verdade. Algumas coisas estavam soltas, os blocos fora de ordem, então a primeira providência (tomada ignorando meus instintos curiosos) foi organizá-los como numa linha do tempo. E só então começar a ler. Meu pai só deixaria isso tudo desordenado se não tivesse tido tempo suficiente... Mas estava tudo tão bem planejado, que com certeza ele havia tido. Afasto os pensamentos e a ameaça do sentimento de abandono, que ronda meu coração e luta contra minha razão. Ninguém que abandona uma filha deixa uma coisa assim... Não mesmo.
O primeiro bloco datava dezoito anos atrás, com a primeira nota referente exatamente ao dia em que nasci.
Começo a ler, e é impossível fazer isso com a minha própria voz. É como se eu pudesse ouví-lo.

"Núcleo Vermelho.
18 de Fevereiro.
Uma tarde estranhamente fria para o verão, mas com a chuva intensa típica das semanas quentes. O vento balança as árvores, mas tudo está no lugar. Exceto meu coração.
Me sinto, ao mesmo tempo, estranhamente forte e estranhamente vunerável. O tipo de sentimento profundo que eu já não experimentava há tempos. Neste momento, vejo parte dele (do meu coração) bater no corpo de uma garotinha, deitada num berço bem à minha frente. Trata-se de uma menina que nasceu há poucas horas, com olhos tão curiosos que enxergo neles a vontade de desbravar o mundo. De repente, sinto como se ela tivesse sido colocada no topo da minha lista de prioridades e que além disso, que eu daria a vida por ela sem hesitar. Me preparei durante meses para a tarefa de ser pai mas parece que só agora realmente entendi o que deve significar. A partir de hoje, essa garotinha é o meu Sol. Ilumina, aquece, mantém vivo e tudo, tudo gira ao redor dela.
Racionalmente, sei que ela depende de mim para sobreviver, que precisa ser alimentada, cuidada e protegida; e que, de maneira prática, eu posso continuar sem ela. Mas meu coração me diz que se algum dia houver algo errado com ela, haverá comigo também. Que sou tão dependente dela quanto o contrário.
Anna está descansando, e decidimos que daríamos juntos um nome a ela. Queríamos ver o seu rosto antes de decidir. Ela pensou em Athena, que refere-se ao símbolo do equilíbrio e da justiça; além de sabedoria. Coisas que ela quer que a nossa filha tenha. Mas eu pensei em Sophia. Significa diretamente e literalmente sabedoria, na língua dos gregos. E sabedoria é tudo que eu desejo a ela. A partir daí, frutos como equilíbrio, justiça, responsabilidade, calma e tantos outros surgirão. Além disso, olhando-a agora... O nome combina. É diferente. Forte. E ao mesmo tempo, doce. Incomunmente encantador.
Minha filha nasceu parda, com os cabelos escuros e os olhos castanhos característicos do meu Núcleo natal. Nada de pele branca e olhos cinzentos. Fora isso, ela se parece com a mãe. Os traços são praticamente os mesmos. E pelo choro alto e estridente, insistente, temo que a personalidade das duas seja a mesma. Ela não parece alguém que pertença a este ao outro Núcleo, onde todos são iguais.
Ultimamente, tenho descoberto coisas que tem mudado a minha vida quase tanto quanto a chegada da minha filha, e tem me feito alguém diferente. E que também tem me feito duvidar da minha sanidade mental. Talvez, um dia estas coisas até me coloquem em perigo. Talvez me levem para longe. Temo que se tudo o que suspeito for verdade, o mundo como conhecemos possa nunca mais ser o mesmo. Aos meus olhos, jamais será. E estas descobertas podem me tirar de perto dela. Talvez um dia eu saiba tanto, mas tanto, que precise protegê-la. Ou talvez alguém me veja como uma ameaça e me tire de cena. Ou então eu simplesmente tenha que partir. Todas essas possibilidades me deixam aflito. A partir do momento em que seus olhinhos encontraram os meus, duas horas atrás, meu maior objetivo é vê-la crescer saudável e feliz e poder acompanhar cada passo. Nada mais importa. Só que o mundo lá fora talvez não entenda isso.
Eu espero que ela nunca se esqueça do quanto é importante para mim, e que possa sentir meu apoio nos piores e melhores momentos. Penso que um dia ela será a pessoa em que eu mais confio, e que vou querer ensinar a ela tudo o que ela quiser aprender. E guardar segredos pode não ser uma opção.
Se um dia ler isso, peço que tenha coragem, minha estrelinha. O conteúdo das minhas anotações raramente é sutil como este ou provoca bons sentimentos como seu nascimento. Sua vida está começando agora e eu tenho certeza de que você não nasceu para algo menos que mudar o mundo.
Seja bem vinda, filha.
Todo amor do mundo,
Papai.
Carlos Henrique Harã."

As lágrimas escorrem antes que eu possa segurar. Não há nenhuma dúvida de que meu pai se importa comigo, e de que isto está premeditado há bastante tempo. E se foi premeditado... Provavelmente ele está bem e eu vou achar alguma coisa aqui que me diga o que realmente aconteceu. Só preciso ser cuidadosa, atenta e saber investigar. Há coisas que meu pai estuda há quase vinte anos, e que o levaram para longe. Que coisas seriam essas?
Estou perdida em meus próprios pensamentos quando escuto o ruído da porta da frente abrindo. Minha mãe voltou. Visto a camiseta rapidamente, seco as lágrimas, coloco tudo de volta na caixa e lanço meus pertences no esconderijo mais óbvio do mundo: debaixo da cama. Não há tempo para pensar em nada melhor. Sento-me na escrivaninha e abro um livro qualquer, prendo o cabelo num coque e seguro um lápis. Já está quase na hora do toque de recolher, então de qualquer forma, minha mãe apenas virá e me dirá para dormir.
O barulho dos saltos dela batendo na escada cresce e no momento esperado, ela bate três vezes na porta e abre-a. Olho para ela, dando um leve sorriso. Fecho o livro, viro a cadeira e espero que ela diga alguma coisa. Mas não há nada.
- Então... Hm... Como foi? Notícias do papai? - pergunto, estranhamente tranquila. Se alguém tem pistas, sou eu. Preciso me forçar a parecer consternada, como estava antes dela sair.
- Não muitas. - responde, respirando fundo e sentando-se na cama. - Parece que houve uma espécie de chamado de Emergência, um problema com o Arquivo do Núcleo Cinza. Só o seu pai seria capaz de resolver esse tipo de coisa. Então ele foi.
- E porque ninguém nos disse nada? - pergunto, erguendo as sobrancelhas. Ela sorri, desviando o olhar.
- Sabe, Sophia... Há coisas que estão acima de nós. Nós nem sempre seremos as primeiras a saber. Talvez tenhamos sorte se formos as últimas. - diz, mantendo o tom calmo e severo da voz. Mas seu olhar me diz outra coisa: ela está com raiva. E preocupada. - Nos resta torcer para que ele volte em breve, quando seu trabalho for concluído. Pode levar meses, ou até mais de um ano... Não há como saber. - completa, voltando a me olhar.
Odeio quando ela me olha nos olhos. É impossível mentir. É impossível esconder qualquer coisa. É como se eu estivesse totalmente sem defesa. Mas dessa vez, eu preciso conseguir. Se eu sei de coisas, e ela não... Prefiro manter em segredo até ter certeza de que posso deixá-la segura. Mas ela e meu pai se conhecem há mais tempo do que eu possa imaginar e simplesmente não é possível que ela não saiba de nada. Ou talvez ela é que esteja me escondendo algo, afinal.
- Podemos ao menos falar com ele? - insisto, parecendo triste. Deixo uma lágrima remanescente da leitura da carta cair, e parece convencê-la. Minha mãe levanta, toca meu rosto, passa a mão no meu cabelo e lança o mais complacente dos olhares.
- Meu bem, você sabe que a comunicação entre os Núcleos nao é permitida. Sei que vai sentir saudades. Mas você é forte. Vai sobreviver.
- Forte como o Sol. - respondo, fazendo referência ao lema de vida da minha mãe.
Quando ela era criança, houve uma epidemia muito grave de um tipo de recém descoberto de gripe. Uma doença extremamente banal, fácil de cuidar e fácil de evitar. Logo no início, as pessoas começaram a se vacinar e os doentes foram tratados. Não era para ir muito longe. Mas algo deu errado com a vacina, e alguns começaram a sofrer graves efeitos colaterais... E alguns destes, em casos extremamente raros, morreram. Acontece que minha avó, mãe da minha mãe, era um desses casos. Minha mãe e a irmã gêmea, Rute, tinha quase sete anos na época. Acontece também que minha avó era médica, uma das mais brilhantes que a Academia já formou, e ela tinha plena consciência de seu destino. Então, decidiu deixar alguns ensinamentos escritos de maneira didática, usando o Sol como referência para que as duas menininhas entendessem.O último deles foi "Haja o que houver, com ou sem mim, na vida ou na morte, na alegria ou na adversidade, com medo ou coragem: Seja forte e pareça bem. Brilhe como o Sol." Pouco forte para duas crianças, na minha opinião. Mas isso se enraizou no coração da minha mãe com tanto afinco que nada a traduziria melhor que esta frase. Sempre forte, sempre altiva, sempre perfeita, brilhando e iluminando quem está ao redor a cada passo. Pena que eu não possa dizer o mesmo da tia Rute.
- Sempre. Sempre como o Sol. - confirma minha mãe, me deixando após me dar um beijo na testa. - Até amanhã, querida. Vá dormir. Já é hora. E, ah, coloque um curativo no dedo.

Quando ela sai e apaga a luz, a primeira coisa que faço é fechar a porta, recuperar os papéis que estão sob a cama e ligar o abajur. Dormir hoje seria impossível.

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