Prólogo

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As ruas são sossegadas. Não há nenhum sinal de alerta, nenhum sinal de violência, nenhum som, na verdade. São seis da manhã, e as casas, regulares e extremamente parecidas, começam a ter suas portas fechadas (mas nunca trancadas) por moradores também extremamente parecidos, que saem para cumprir suas funções e colaborar para o crescimento da sociedade. Algumas pessoas caminham juntas, conversando baixo, enquanto outras, como eu, seguem o caminho sozinhas, entregando-se a automaticidade da rotina e fingindo não pensar sobre o sistema, a sociedade, as regras e sobretudo, tentando não pensar em buscar um propósito para estarmos ali. Começo a ver o céu mudar de cor, respiro o ar gélido da manhã e sinto como se houvesse alguém lendo meus pensamentos e querendo me punir por eles.

Todos os dias, às seis da manhã, vestimos nossos uniformes e seguimos para a Academia. As cidades são divididas em regiões, e cada região tem a sua Academia própria, onde somos educados desde os três anos. Sendo assim, a maioria das nossas relações acontecem lá dentro e todo o conhecimento nos é passado lá, o que justifica a obrigatoriedade em frenquentá-la. Nossos pais e avós, na maioria das vezes, frequentaram as mesmas Academias que nós, uma vez que a mudança de núcleo, cidade (ou até mesmo de região) é extremamente rara. Há tradição, conhecimento, relações e obrigatoriamente na Academia, o que me faz gostar dela e ao mesmo tempo odiá-la. Provavelmente, meu destino será semelhante ao dos meus pais: quando você é um bom aluno, respeita as regras e participa de muitas atividades, é selecionado para ser um futuro instrutor e então, no futuro, cuidar da instrução dos mais jovens. Quando cumpre mais ou menos seis anos de serviço, pode deixá-la e então ir aprender outra função. Foi o que meu pai fez. Ou pode seguir lá, como minha mãe fez.

      No caminho para a Academia, árvores posicionam-se nas calçadas e há flores aos pés de cada uma delas. Quanto mais perto se chega dela, mais uniformes vermelho vinho aparecem, desfilados elegantemente por estudantes que, gostando ou não, cumprem a função de estar ali e colaborar para o futuro da sociedade. As flores parecem murchar a medida em que passo por elas, assim como a grama seca. Por algum motivo estranho, não há nenhum pássaro na rua hoje. Geralmente, o caminho é cheio deles. Por um momento, acredito ver meu pai atravessando a rua bem à minha frente. Mas não é ele. É só um cara qualquer. Igual a todos os outros. Nos cumprimentamos erguendo a mão direita e inclinando ligeiramente a cabeça, como é de praxe. Quando se trata de alguém por quem temos algum tipo de afeição, nos permitimos sorrir. Não é um caso. Por um segundo, todos na rua me olham e sinto que estão esperando por um sorriso. Mas quando pisco os olhos e me preparo para dá-lo, todos me ignoram e seguem seu caminho.

      A construção monstruosa ergue-se perante nós, com as janelas abertas e é possivel imaginar o movimento inquieto dos inspetores afoitos, sedentos por qualquer deslize, olhando-nos em busca de qualquer ameaça à ordem e à disciplina. Os instrutores mergulhados em planos, testes, trabalhos e conteúdo, importando-se em formar mentes úteis e àgeis. Os faxineiros, silenciosos, mantendo tudo organizado e limpo. O último andar, propriedade da direção, era um mistério para todos nós. Quem passava por lá, a não ser que fosse funcionário, provavelmente não voltaria à Academia de novo. O destino deles era algo sobre o qual eu realmente não gostava de pensar.

      Atrasos, obviamente, não são tolerados na Academia. Então, antes do horário, todos nós já atravessamos o jardim e o magnifíco portão de ferro com a insignia do Estado e o brasão de nosso Núcleo. Nos despedimos de nossos sonhos, imaginações e pensamentos mais loucos, e nos dirigimos às salas de aula.  Ouço alguém chorar, mas o barulho some a medida que adentro o prédio principal. Pela grade de horários, vejo que é terça.

      Uma terça feira como outra qualquer, não fosse pelo livro que achei dentro de meu armário, sem título. Apenas uma capa preta de couro. Ao lado, um bloco de anotações já surradas e duas canetas como as que os instrutores usavam. Os objetos chamam por mim, e tem a minha voz. Assustada, esfrego os olhos e respiro fundo. Nada muda. Ao olhar para o lado, vejo meu pai. Penso em perguntar o que aconteceu e o que significa aquilo mas ele some tão rápido quanto aparece. No mesmo piscar de olhos, minha mãe surge e a vejo chorar. Mas ela também some.

De repente, o corredor se torna frio e escuro. E me sinto completamente sozinha.

Então eu acordo.

E me esqueço deste sonho, como tenho feito há quase uma semana.

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