Assim que bati à porta de Tomás, percebi que aquilo poderia ser um grande erro. Eu já não o via há anos, mesmo antes de entrar em coma. Ele podia estar casado, ter uma família, e seria difícil explicar que quando seu ex melhor amigo paranormal pede abrigo, o certo é ajudá-lo. Ele podia estar numa fossa, depressivo e maníaco por não ter mais a minha presença encantadora todos os dias. Ele podia estar morto. Tomás nunca foi muito de fazer amigos legais, e eu sou um exemplo vivo disso.
Ainda assim, continuei ali, diante da porta negra de madeira. Ouvi passos, e o tilintar de uma chave girando na fechadura. Meu coração, à mil. Aquele desgraçado estava vivo, afinal?
Sim. Tomás estava vivo, parado diante de mim, com a porta aberta. Boquiaberto, e com uma garrafa de cerveja na mão. Uma pochete presa na frente do corpo, os cabelos cor de graxa penteados para trás. Ele deu um sorriso amarelo, e me abraçou.
— Dante! Você tá vivo! — ele disse, em voz alta, bem bêbado. Não lembro do que ele estava pensando, porque estava concentrado demais no cheiro pungente que ele esparzia.
— E você tá bêbado. — respondi, afastando ele do abraço. Ele manteve as mãos nos meus ombros, e em seu rosto semi-sério se formou um sorriso de orelha a orelha.
Eu expliquei para ele sobre Sarah, e sobre o apartamento que tínhamos de frente para o mar. Descrevi como suas curvas eram suaves e íngremes, e sobre sua voz doce e marcante.
Ele, por sua vez, disse como a vida dele decaiu depois do ensino médio. Primeiro, seu pai morreu de câncer cerebral. Eu gostaria de poder divagar sobre essa parte, e contar com mais detalhes sobre a primeira noite que passei na casa de Tomás, mas temo que eu não tenha tanto tempo.
Vou resumir, mais uma vez. Tomás disse que morava sozinho, e chorou um pouco ao perceber a própria solidão perante o resto da humanidade. Eu nunca fui meloso, mas devo admitir que os pensamentos que ele teve naquele momento cortaram meu coração. Coisas no nível de "se eu me matar, não haveria alguém para fazer uma playlist pro meu funeral", e eu, obviamente, me culpei um pouco por isso. Embora bêbado, ele conseguia manter uma linha quase lógica de pensamentos, e isso me impressionou um pouco.
Eu me ofereci para fazer a playlist, e ele me deixou ficar. Deixar, na verdade, é uma palavra muito fraca. Ele precisava da minha presença tanto quanto eu precisava de um teto para ficar.
E le me ofereceu um quartinho acima da garagem, que tinha vista para a casa da frente. Tomás morava num daqueles bairros americanizados, onde as casas eram quase iguais, e cercas separavam uma da outra. Meu quarto não era pequeno, nem grande. Tinha uma cama perto da parede, uma escrivaninha com duas gavetas, um chão de carpete e um cheiro de mofo que me reconfortava.
Eu conseguia ouvir os passos de qualquer um que subisse a escada, e isso também me reconfortava, de certa forma. O colchão era rígido num dos lados, e muito mole na outra.
E, sobre a escrivaninha, tinha um livro: "Margaridas de Ferro". Um romance trágico ambientado primeira guerra mundial, que contava a história de uma mulher que transformava tudo o que tocava, em ferro. E é claro que o governo francês sabia, e usava ela como arma contra os Impérios Centrais.
Um ótimo livro. Talvez o melhor que eu já li.
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Quatervois
ParanormalQuatervois: em francês, encruzilhada. Decisão crítica, ou ponto de virada na vida de alguém. Escrevo neste diário pois é tudo o que me resta a fazer. Preciso contar a minha história. Não começarei do início, mas do ponto de virada. A parte mais im...