Sentada ao lado de Ilma no ônibus, Frederica fechou os olhos e fingiu que dormia. Os dias que antecederam aquele haviam sido...
Não existiam palavras capazes de definir o que sentia. Não fazia ideia de como ou o que convencera os pais, mas surpreendentemente, após uma breve objeção inicial, eles haviam permitido a viagem e agora as duas estavam ali, a caminho de Barra Alta do Paraíso. Tampouco imaginava o que encontraria, muito menos do que aconteceria quando chegassem lá.
Subitamente, a densa fumaça cinza que emoldurava sua existência se esvaíra mas ainda assim não era capaz de enxergar mais do que vultos e sombras, imagens que não sabia se um dia seriam significadas. Permanecia divagando, a memória compartilhada em fragmentos, resquícios que não se encaixavam nem formavam qualquer linearidade. Exatamente como sempre, muito mais uma sensação, a memória que tentava inutilmente captar.
Findas as três horas que a ansiedade fez parecer a eternidade, seguiu Ilma – já não conseguia pensar nela somente como sua avó – para fora do ônibus.
Depois que pegaram as malas, trocaram um olhar que traduzia o misto de expectativa, angústia e incerteza em que as duas se encontravam. De forma absolutamente contrária à passividade que lhe era habitual, Frederica segurou a mão de Ilma e afirmou muito mais para si mesma:
- Agora não tem mais volta.
A concordância de Ilma se deu com um aceno afirmativo de cabeça, seguido de um determinado:
- Vamos.
Seguiu na frente, em direção às respostas que buscara durante toda a sua vida. Assim que ultrapassou o portão que separava a plataforma de desembarque da parte central da pequena rodoviária, foi abordada por um jovem que se aproximou cautelosamente para não a assustar:
- Com licença... A senhora é a dona Ilma?
Na mesma hora identificou:
- Ricardo?
O neto de Sônia - sua melhor amiga de infância e adolescência, com quem recentemente recuperara o contato através do facebook – sorriu para as duas:
- Sejam bem-vindas!
Apressou-se em pegar as duas malas de rodinhas que Ilma e Frederica puxavam. As duas ofereceram uma resistência cerimoniosa, que foi facilmente vencida por ele. Sempre solícito, Ricardo indicou:
- Por aqui.
Antes de guiá-las até o estacionamento onde deixara seu carro – na verdade, um táxi. Perguntou:
- Fizeram boa viagem?
Enquanto os dois travavam uma conversa cordial, a atenção de Frederica se voltou para observar à sua volta. Decepcionou-se ao perceber que o local lhe parecia inteiramente desconhecido e não lhe despertava qualquer sensação ou memória.
Assim que entraram no carro - Ricardo no banco do motorista, a avó na frente ao lado dele e Frederica atrás - Ilma sugeriu:
- Faça o favor de ligar o taxímetro.
A despeito do tom bem-humorado que ela usou, Ricardo protestou com seriedade, firmeza e simpatia:
- De jeito nenhum. Não estou trabalhando, só vim buscar vocês no táxi porque é o único carro que temos.
Antes que Ilma pudesse replicar, completou:
- Minha avó está ansiosa para revê-la. Ela sempre conta histórias das coisas que aprontava quando era criança e a senhora faz parte de todas elas.
Foi o suficiente para que engatassem uma conversa repleta de risos e nostalgia, permitindo que Frederica se dedicasse a olhar pela janela durante o percurso que durou pouco, alguns minutos depois estacionaram em frente a um pequeno café.
VOCÊ ESTÁ LENDO
PORQUE HOJE É O FUTURO PASSADO
RomansaComo seria se você tivesse lembranças de uma vida que não é a sua? Quando pequena, Frederica confundia. Na verdade, não sabia distinguir entre o que era real ou não. Cresceu acompanhada dos mais variados medicamentos e terapias, sem que aquilo jamai...