Nove horas da manhã de sábado. São Paulo ferve: de gente e de calor. A temperatura crescente que deve atingir seu pico por volta de meio-dia e gerar aquela canseira pós-almoço. Não há uma calçada que comprove a teoria de que dois corpos não ocupem o mesmo lugar ao mesmo tempo: é muita gente para pouco espaço.
Como se não bastassem as inúmeras pessoas transitando em diferentes velocidades, coladas ao meio fio estão as barracas da feirinha. Em meio ao empurra-empurra, dona Lourdes tenta parar e comprar Jiló: o netinho precisa crescer forte. Seu João quer abóbora: a carne seca já descansou desde o almoço de ontem. Mariazinha vem saltitante comprar maçãs para a mãe fazer a torta.
E então, como se tudo isso ainda não fosse o suficiente, tia Martinha grita de trás das barracas: "Pega ladrão!". A comoção é enorme, quem está passando olha para todos os lados e agarra forte a bolsa junto ao peito. Quem está nas barraquinhas procura aflito algum sinal do malandrinho. Lá vêm os policiais com o cassetete e acertam nas canelas ligeiras de um mulato com um saco de laranjas que vai ao chão.
"A gente disse pra você tomar jeito, moleque!" – diz um dos policiais.
"Eu num fiz nada não, tio" – rebate o menino.
"Lugar de criança é na escola, não atrapalhando o comércio dos outros." – diz o policial mais gorducho.
"Não dá pra estudar com fome, seu guarda." – o rapazinho fita o chão.
Comovida, tia Martinha diz pra deixar o menino. Puxa um banquinho, coloca atrás da barraquinha que é pro garoto poder conversar. Enquanto isso, a comoção já se desfez: as pessoas continuam andando, apressadas, com as bolsas a tiracolo entre os gritos dos feirantes e de quem parou pra comprar Jiló, abóbora ou maçãs.
– Por que é que você num tá na escola, menino? – tia Martinha pergunta, enquanto dá o troco a um homem de terno.
– É que eu tava com fome... E lá em casa cabô a comida.
– Daí cê rouba?
– Num tava roubando, não... Eu ia pagar.
– E por que cê num falou comigo então?
– É que eu tava com pressa. Luizinho tava chorando em casa e eu ainda tenho que estudar.
– Luizinho é seu irmão?
– É, sim senhora.
– E cadê seus pais?
– Meu pai eu num sei quem é, não, tia. Mas minha mãe falô que ia trabalhá.
– Quantos ano tem o Luizinho?
– Tem três, tia.
– E fica sozinho?
– Fica, não. Ficou hoje pra eu vim pegá comida, mas vai pra escola com eu.
– Toma, leva as laranja pro Luizinho e volta com ele aqui depois da escola.
O menino saiu correndo com o saco de laranjas à mão. Adentrou em sentido contrário ao da multidão e subiu o morro pra casa. Cortou uma laranja ao meio, entregou as bandas para Luizinho e colocou o restante dentro da mochila surrada. Foi andando com o irmão, ambos os meninos comendo laranja pelo caminho.
Depois da escola, era hora de voltar à barraca de tia Martinha. Logo que viu os meninos, ela limpou as mãos contra a roupa e puxou dois banquinhos para que sentassem. Perguntou da escola, da família e descobriu que a mãe das crianças era viciada. Não ligava para os filhos, batia neles sempre que tinha uma crise. Naquela noite, ajuntou o dinheiro de três dias de feirinha e decidiu ter com Lauanda no dia seguinte.
Tia Martinha deixou para ir quando as crianças estivessem perto de sair da escola. Conversou com Lauanda sobre pegar os meninos pra si e a mulher fingiu ofensa. Oferecidos uns 240 reais, Lauanda cresceu os olhos pelo vício e disse onde estavam os pertences das crianças: cinco mudinhas de roupa de cada uma em cima do colchão de solteiro onde dormiam e um carrinho de garrafa pet com uma roda faltando.
Assim que chegaram da escola, tia Martinha levou os dois para sua casa. Pôs os meninos para jantarem um bom prato de arroz, feijão, farinha e ovo. Mostrou o sabonete e fez tomarem banho. Lavou bem o rostinho e as mãozinhas de cada um e mandou lavarem o cabelo. Ligou a televisão de quatro canais abertos e colocou onde estava passando desenho. Sentou com os meninos no sofá até adormecerem os três, cansados do dia.
Assim foi por anos: tia Martinha deixava as mochilas prontas e pão fresco para as crianças tomarem café antes de ir para a feira. Trabalhava e quando os meninos chegavam da escola, sentavam em seus banquinhos com os livros abertos e faziam o dever de casa. Depois, jogavam as mochilas por cima do portão e iam jogar bola com os outros garotos do bairro até às oito.
Mãe Martinha chegava da feira e gritava os meninos pro banho, cuidava dos dedos e joelhos ralados até decidir que era hora de comprar chuteiras. Via desenho com os dois depois da janta e se preparava para o próximo dia. Aos finais de semana, trabalhava só até o almoço e depois levava os meninos para o parque ou para um banho de mangueira no quintal, quando estava muito quente.
Os anos passaram e os meninos foram crescendo, junto com a quantidade de cabelos brancos de mãe Martinha. Naquela tarde, Luizinho quis ficar em casa: estava ficando gripado. O mais velho saiu sozinho para jogar bola. Chuteira na mochila, foi feito de bandido. Levou um tiro nas costas, foi abraçado aos berros de mãe Martinha e choro de Luizinho, e a última coisa em que pensou foi num saco de laranjas.
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Crônicas genuinamente brasileiras
Short StoryCrônicas irônicas e nem sempre divertidas para roubar alguns minutinhos do seu dia e, com sorte, do seu coração. "Algumas palavras podem mudar o seu dia. Alguns textos, toda uma vida.". Histórias independentes que representam o povo brasileiro. Tamb...