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Após vinte e cinco anos de pesadelos e terror, dos quais fui salvo apenas por uma convicção desesperada na origem mítica de certas impressões, reluto em afirmar a verdade do que julgo ter encontrado na Austrália Ocidental na noite do dia 17–18 de 1935. Tenho motivos para crer que minha experiência tenha sido, no todo ou em parte, produto de uma alucinação — para a qual, a bem dizer, havia razões de sobra. Mesmo assim, confesso que o realismo dessas impressões foi a tal ponto horripilante que às vezes perco a esperança. Se aquilo de fato aconteceu, então a humanidade deve estar pronta para aceitar noções a respeito do cosmo e do próprio lugar que ocupa no turbulento redemoinho do tempo cuja simples menção tem um efeito paralisante. Deve também ficar de guarda contra um certo perigo à espreita que, embora não seja capaz de engolir toda a raça dos homens, pode trazer horrores monstruosos e inimagináveis para certos indivíduos mais audazes. É por isso que peço, com todas as minhas forças, que abandonem de vez todas as tentativas de encontrar os fragmentos de cantaria desconhecida e primordial que a minha expedição tinha por objetivo investigar.

Admitindo-se que eu estivesse acordado e em pleno domínio das minhas faculdades, a experiência que tive naquela noite não se compara a nada que outrora tenha se abatido sobre homem algum. Foi, além do mais, uma confirmação pavorosa de tudo que eu havia tentado descartar como mito e sonho. Quis o destino misericordioso que não existisse nenhuma prova, pois no terror que tomou conta de mim eu perdi o espantoso objeto que — caso fosse real e tivesse sido retirado daquele abismo insalubre — teria servido como prova irrefutável. Quando me deparei com o horror eu estava sozinho — e até hoje não o revelei para ninguém. Não tive como impedir que outros fizessem escavações naquela direção, mas por enquanto a sorte e as areias inconstantes frustraram todas as tentativas de localizá-lo. Agora preciso fazer um relato definitivo — não apenas por conta do meu próprio equilíbrio mental, mas também para alertar todos os que se dispuserem a levá-lo a sério.

Escrevo estas páginas — que nas primeiras partes trarão informações familiares aos leitores atentos de jornais e periódicos científicos — na cabine do navio que está me levando para casa. Pretendo entregá-las ao meu filho, o prof. Wingate Peaslee, da Universidade do Miskatonic — o único membro da minha família que se manteve ao meu lado após a estranha amnésia de anos atrás, e também a pessoa mais bem-informada a respeito dos detalhes pertinentes ao meu caso. No mundo inteiro, Wingate é a pessoa menos predisposta a ridicularizar este meu relato sobre aquela noite fatídica. Não lhe ofereci nenhum relato oral antes de zarpar, pois achei que seria melhor fazer a revelação por escrito. A leitura e a releitura nos momentos de maior conveniência devem fornecer-lhe um retrato mais convincente do que a minha língua confusa seria capaz de oferecer. Wingate pode fazer o que achar melhor com este relato — inclusive apresentá-lo, com as devidas explicações, em qualquer lugar onde possa servir para o bem. É em benefício dos leitores ainda não familiarizados com as primeiras etapas do meu caso que prefacio minha revelação com um sumário abrangente da situação anterior.

Meu nome é Nathaniel Wingate Peaslee, e aqueles que recordam as notícias de jornal da geração passada — ou ainda as cartas e os artigos publicados em periódicos de psicologia seis ou sete anos atrás — devem saber quem sou e o que represento. A imprensa publicou inúmeros detalhes sobre a estranha amnésia que me acometeu entre 1908 e 1913, e muito se falou sobre as tradições de horror, loucura e bruxaria que espreitam o antigo vilarejo de Massachusetts, desde então o local da minha residência. Mesmo assim, eu gostaria de deixar claro que não há nada de sinistro ou de anormal na minha linhagem e na minha vida pregressa. Trata-se de um detalhe importante em vista da sombra que se projetou sobre mim de maneira tão súbita, vinda de fontes externas. Pode ser que séculos de maus augúrios tenham conferido à decrépita Arkham assombrada por sussurros uma vulnerabilidade particular no que diz respeito a tais sombras — embora até isso pareça duvidoso à luz dos outros casos que mais tarde tive a oportunidade de estudar. Mesmo assim, o fato mais importante a ressaltar é que a minha genealogia e o meu passado são completamente normais. O que veio, veio de algum outro lugar — de onde, no entanto, ainda hoje eu hesito em afirmar de maneira categórica.

A Sombra Vinda do TempoOnde histórias criam vida. Descubra agora