Papai e mamãe têm medo de alguns olhares que recebo fora de casa. Desde que troquei os bermudões por saias, sou um espetáculo ambulante. Muita gente para pra ver e nem disfarça, às vezes acho até que vão jogar uma moedinha. Foi estranho no começo, mas acabei me acostumando. O problema é se for além dos olhares.
O noticiário mostra que nunca estou segura. Seja numa feira lotada às oito da manhã ou num ônibus quase vazio às oito da noite, em qualquer lugar pode ter um louco querendo me retalhar por causa daquilo com que nasci entre as pernas. Repito pros meus pais que é apenas sensacionalismo, mas quando estou sozinha sempre olho para os lados.
— Que bom que você veio! Estava preocupada.
As batidas do meu coração abrandam assim que ouço a voz de Leandra, minha amiga desde que formamos par na quadrilha, na segunda série. Ninguém vai me fazer mal aqui no colégio. Estou protegida.
— A galera da comissão de formatura perguntou por você, depois fala com eles pra te incluírem de novo no grupo. Você vai voltar a usar o celular, certo?
Assinto com a cabeça, enquanto ela me guia pela sala. Dar um tempo da internet foi uma das primeiras atitudes que tomei quando assumi para meus pais que era trans. Procurei em todos os lugares, até os mais remotos, o melhor jeito de contar para eles. Sofri uma overdose de informação. Uma contradizia a outra, que contradizia a outra, e nenhuma parecia dar certo. Fui ficando cada vez mais desesperada, e esse desespero estourou a bolha de mentiras que me guardava dos julgamentos alheios. As palavras saíram sem querer, e eu me senti estúpida logo depois de cuspi-las, então culpei a internet por ter me incitado, mas agora estou pronta para fazer as pazes com ela.
— Nem adianta tentar sentar, seu lugar já está ocupado. A Ivete foi ao banheiro e já volta — diz Leandra, se sentando na cadeira atrás daquela em que eu costumava sentar.
Olho para ela, surpresa. Sentamos juntas desde o primário. Sempre guardamos o lugar uma da outra, mesmo quando não temos certeza se a outra virá à aula.
— A Ivete começou a sentar aqui na segunda semana em que você faltou, ela disse que não estava enxergando direito e que tinha que vir mais pra frente, dias depois começou a usar óculos. Ela está igualzinha a uma tartaruga. — fala tudo de uma vez sem sequer perder o fôlego, uma habilidade que invejo nela, pois minha asma me arrancou a chance de ter uma respiração decente. — Parece até a tartaruga do Júlio, o esquisito do segundo ano, aquele que vomitou em você no passeio pro zoológico no ano retrasado, lembra? Sabia que ele também tem um lagarto e um ouriço?
Fico tonta com o amontoado de palavras que é jogada no meu colo.
— Ali perto do Douglas tem um lugar pra você. — Leandra aponta com o queixo para o lado oposto da sala, quase no final da fileira. Enfia o lápis entre os dedos e começa a deslizá-lo pelo caderno. — Agora, preciso terminar o dever antes que o professor perceba que não fiz em casa. Dá licença, Heitor.
— É Bárbara. — digo baixinho.
O lápis para no meio da folha. Leandra ergue a cabeça com a mesma rapidez com que suas sobrancelhas bem feitas também se erguem.
— Meu nome. Bárbara. Não é bonito? — minha voz sai mais alta e eufórica, junto com meu sorriso. Pigarreio, tentando, na frase em seguida, controlá-la para que não ultrapasse o volume aceitável, para não atrapalhar a aula do professor Cassiano, que se mantém concentrado no texto que passa no quadro. — Escolhi por causa daquele livro incrível que você me emprestou quando a gente estava na sexta série.
Leandra sorri de volta, mas o sorriso não se alastra pela bochecha gordinha e nem destaca o verde-água dos olhos.
— "Heitor" é um nome tão bonito... — ela sussurra, não sei se com a intenção de que não eu escute.
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Vodca e Água Benta
Short Story2° Lugar no Concurso Lipstick Heitor é um adolescente religioso que estuda em um colégio católico junto com a sua amada namorada, Débora. Mas a relação dos dois, assim como toda a vida de Heitor, tem uma reviravolta quando ele se assume como Bárbara...