Saio da sala ofegante e ao mesmo tempo com os pulmões repletos de ar. Sou capaz de gritar mais alto que o mundo inteiro, mas não preciso de nada além de um sussurro para ser ouvida, porque o mundo inteiro é meu. Papai estava certo.
A música que embala a dança dentro do meu peito cessa de repente quando vejo, no meio do corredor, ele me encarando com os braços cruzados. O rasgo que tem no lugar da boca está torcido para a direita, sinal de desprezo que conheço muito bem.
Tento passar batido, mas o corpo dele se move para o lado, empatando meu caminho.
— Que maluquice é essa, menino?! — ele ralha.
— Professor Zé Ricardo, o que o senhor está fazendo aqui? Não é dia da sua aula.
— Vim botar ordem nessa balbúrdia. A Irmã Leila precisou de descanso. Coitada, está cansada dos desgostos que dão a ela. Como você, desafiando as leis de Deus logo na casa dele! — os olhos do professor caem direto do volume que o peito postiço forma na minha blusa para a falta de volume na minha calça, técnica de esconder aprendida pela internet com muito afinco.
— Que Deus é esse que condenou meu coração, que só quer paz, mas não condena o seu, que é cheio de ódio? — cuspo de uma vez, borbulhando de vergonha e raiva.
O rasgo do professor Zé Ricardo se expande no rosto enrugado. O burburinho ao redor emudece, pressentindo o embate que está por vir. Um cordão de pessoas se forma ao nosso redor, todas boquiabertas. Faz tanto tempo que não ouviam minha voz que devem ter desacostumado. Na verdade, elas nunca a ouviram.
O professor engole em seco não de medo, mas de nojo. As pálpebras dele tremem tanto que parecem que vão descolar do corpo. Tremo igual, mas permaneço inflexível. Não vou engolir minha voz nunca mais, não vou discordar em silêncio.
Heitor calava a boca, mas Bárbara não vai calar.
Tomamos fôlego ao mesmo tempo. Nossas bocas se abrem em sincronia, por mais opostos que somos. As pessoas ao redor também tomam fôlego, se preparando para uma discussão nunca vista antes na história da Santa Brenda Lee. Ninguém ousa questionar nada nesse colégio. O que a gente faz é por debaixo dos panos, e assim a ilusão da obediência se perpetua. Somos todos cordeiros, mas ninguém sabe que também somos lobos.
As ofensas do professor, porém, nunca chegam a meus ouvidos e minha rebeldia nunca chega aos dele. O corredor é um borrão quando vôo por ele, movida por um motor desconhecido e, antes que possa entender o que está acontecendo, a porta bate atrás de mim.
Pisco, tentando assimilar o que estou fazendo aqui. Os quadros bíblicos nas paredes, o imponente crucifixo pendurado ao lado do quadro, as pequenas cruzes sistematicamente distribuídas pelos quatro cantos da sala, tão marrons quanto os tacos do escorregadio piso, tudo é muito familiar. Mas nada é mais familiar do que a imensidão escura com que me deparo depois de todo esse tempo.
A falta de ar me atinge, e não posso culpar a asma. Os olhos Débora têm esse efeito sobre mim.
— Por que você fez isso? — pergunto baixinho.
— O Zé é o diretor temporário da escola, brigar com ele é encrenca na certa. Salvei sua pele. De nada!
— Não preciso que ninguém me salve.
— Como não? Quer levar uma suspensão, Heitor?
O sangue, estático de susto, volta a correr com força no meu corpo e vai parar na cabeça. Vago pela sala de religião, esfregando com força o rosto.
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Vodca e Água Benta
Short Story2° Lugar no Concurso Lipstick Heitor é um adolescente religioso que estuda em um colégio católico junto com a sua amada namorada, Débora. Mas a relação dos dois, assim como toda a vida de Heitor, tem uma reviravolta quando ele se assume como Bárbara...