RENÚNCIA

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Sem pressa, o céu se pintava de azul. Uma a uma, as estrelas se apagavam. Aos poucos, a terra tornava-se visível. As hortaliças se refrescavam no orvalho. O galo batia suas asas, cantava com força anunciando o amanhecer no Sítio da Pedra Cantante.

O relógio digital em cima do desgastado criado-mudo de madeira ao lado da cama de José Antônio, um homem de quarenta e dois anos e pele judiada pelo sol, marcava 5:07. Ele verificou o horário e, cuidadosamente, ergueu o tronco, mas não conseguiu evitar o ranger da cama. Torceu o pescoço e observou sua esposa. Ana continuava dormindo, coberta por um puído lençol azul.

Ele ficou um tempo olhando para o rosto da única mulher que teve em toda a sua vida. Perdeu-se nos sentimentos e pensou se ele conseguia explicar o que era amor. Mas ele não tinha que explicar nada disso. Há vinte anos vivia uma vida simples e incólume de qualquer atrito com ela. Reconheceu que todas as conquistas na sua vida adulta não teriam acontecido se ela não estivesse presente. Era um homem quieto, mas não tinha medo em reconhecer que sua vida valia a pena porque a tinha ao seu lado. Ele se deitaria novamente e a abraçaria, e diria o quanto a amava, mas José Antônio não era dado a exteriorizar dessa forma o sentimento, que por vezes não cabia nele. Talvez sentisse vergonha dos calos que a enxada da roça deixava na sua mão. Respirou fundo, contemplando-a de verdade, esboçou um ligeiro sorriso nos olhos e se levantou.

A cozinha era o maior cômodo da casa, e os poucos móveis no ambiente a faziam parecer ainda maior. Uma mesa de madeira coberta por uma toalha de plástico com estampas coloridas. Quatro cadeiras ao redor dela e duas encostadas num canto da parede. Um armário de fórmica bege. Uma bancada de alvenaria revestida de azulejos carcomidos pelo tempo que se estendia de uma parede até a pia de alumínio, impecavelmente limpa.

O cheiro do amanhecer se completou quando José Antônio despejou a água quente em cima do pó de café no coador de pano, deixando cair o líquido preto no bule de latão amassado e areado. Esperou toda a água escoar, pegou o bule e encheu uma xícara esmaltada. Bebeu o café puro e seguiu para a sua rotina diária.

Um sofá de três lugares com o couro negro já trincado e três cadeiras de vime se distribuíam pelos quase quinze metros de varanda, que tomava toda a face leste da casa. Ele se sentou na cadeira mais próxima à cozinha, tirou o chinelo e enfiou o pé na já gasta botina que o aguardava toda manhã naquele mesmo lugar. Dobrou a barra da calça jeans desbotada, mas limpa, abotoou a camisa de manga curta e, antes de seguir, permitiu-se mais um instante de contemplação. Jogou suas costas no encosto da cadeira e observou o horizonte avermelhado. Um olhar de agradecimento pela vida que ele considerava completa.

Pegou o boné pendurado em um prego na parede, colocou-o na cabeça e foi até um pequeno depósito. Apanhou uma lata velha e amassada, que um dia serviu para acondicionar vinte litros de tinta, agarrou-a por uma alça de arame amarrado em dois furos em lados opostos e levou-a até o chiqueiro. Os cinco porcos, três grandes e dois menores, apareceram roncando, famintos. Ele despejou o milho no cocho, e os animais meteram o focinho, atacando vorazmente o café da manhã. José Antônio sorriu.

Ele enfiou o braço na mesma lata e encheu a mão de milho. Jogou-os no terreiro, provocando a correria de dezenas de galinhas, que se aproximaram, disputando os grãos espalhados pelo chão. Enquanto elas brigavam do lado de fora, José Antônio foi até o galinheiro e recolheu quase duas dúzias de ovos, colocando-os em uma cesta de vime pendurada na viga de madeira.

O sol brando da manhã já invadia a cozinha quando Vicente, um garoto de dezesseis anos, magro, olhos penetrantes, sentou-se à mesa.

— Bolacha? — perguntou sua mãe, uma mulher miúda, cujo sorriso e entusiasmo sobrepunham-se à sua falta de vaidade. — Fiz bolacha de nata ontem — disse à beira do fogão, atenta ao leite que estava prestes a ferver.

ContosWhere stories live. Discover now