A VIDA E O TEMPO

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Quatro anos, três meses e sete dias. Esse foi o tempo de que eu precisei para conseguir chegar até aqui. Um tempo doído. Um caminho penoso. O tempo e o caminho necessários para expurgar os sentimentos que me impediam de contar esta história sem perturbação, sem a penumbra cinzenta que ofusca a alegria de uma vida.

A história que eu vou contar pode parecer triste, mas é a história de uma vida. E qual vida não tem suas tragédias? Qual vida não é assolada pela dúvida e incerteza? Por outro lado, todas elas têm suas conquistas. E é pelo crescimento que vale esta história. Eu só peço, antecipadamente, desculpas por não ser tão preciso nos detalhes e sentimentos envolvidos. Os episódios em que eu não estava presente me foram contados um tempo depois da ocorrência. E nenhum relato jamais chegou incólume do outro lado sem se machucar nas farpas do subjetivismo.

*

Era a segunda semana de aula, e eu sabia que naquele dia eu apanharia de régua por chegar atrasado. Não foi culpa minha. Quando cheguei ao ponto, o ônibus tinha acabado de passar, tempo ainda de levantar toda aquela terra vermelha no meu uniforme limpo e engomado.

Voltar para casa teria as suas consequências. Eu deveria escolher entre a régua de madeira da professora ou o chinelo de borracha da minha mãe. Resolvi percorrer a pé os cinco quilômetros até a escola.

Acho que eu havia andado uns dois quilômetros, ou apenas quinhentos metros, quando passou uma camionete velha. Ela freou logo adiante e veio à minha direção em marcha ré.

— Tá perdido, moleque?

Era o seu Juca, pai da Margarida, a garota mais bonita da minha sala, ou da escola inteira, ou de toda a cidade.

— O ônibus passou mais cedo... — resmunguei.

— Entre aí antes que eu mude de ideia.

Cruzei a frente da camionete amarela, abri a porta pesada de ferro e sentei ao lado da Margarida. Ela estudava na minha sala, mas era a primeira vez que eu me sentava tão perto dela assim.

— Oi — disse ela, linda e cheirosa.

— Oi — respondi, envergonhado, e meu constrangimento só aumentou quando percebi o quanto a minha roupa estava suja. — Você não vai à escola? — perguntei, reparando no vestido de lese branco e fitas amarelas de cetim que ela usava no lugar do uniforme de brim azul-escuro.

— Não — respondeu, abaixando o rosto.

— É enterro da mãe da mãe dela — respondeu o pai, abrindo bem a boca ao pronunciar cada palavra.

— Sinto muito — disse eu a ela.

— Esquenta não, meu rapaz. Morte só é desgosto quando pega a mocidade. Morte de gente velha é alívio.

Eu não tinha muita experiência com morte. Dos que eu conhecia, meu pai foi a única pessoa que a morte resolveu levar consigo, e eu tinha três anos quando isso aconteceu. Ainda que eu não entendesse da dor de morte, eu não concordei com ele, mas, claro, guardei comigo.

O resto do percurso se deu em silêncio. Ele parou na frente da escola, eu agradeci e desci. O bedel ameaçou me impedir de entrar, mas acho que ele ficou com pena do meu estado e me deixou passar pela portaria. Entrei na sala, e não ouvi a esperada bronca da professora, ela só parou a explicação da raiz quadrada e me lançou um olhar severo, indicando para eu tomar o meu lugar, coisa que eu fiz debaixo dos risinhos da classe.

Não consegui prestar atenção em uma palavra dita nas próximas quatro horas. Olhava de esguelha para a carteira vazia da Margarida na primeira fileira, pensando na tristeza que ela poderia estar sentindo no enterro da avó.

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⏰ Last updated: Sep 06, 2019 ⏰

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