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                                       A nascente que corre suave e límpida nos Evangelhos parece escumar nas Epístolas de Paulo. Ou, pelo menos, é o que a mim me parece. Talvez seja a minha própria impureza que me leva a vê-la com um aspecto turvo; pois porque não seria esta impureza capaz de poluir o que é límpido? Mas, para mim, é como se eu visse aqui a paixão humana, algo como o orgulho ou a cólera, que destoa da humildade dos Evangelhos. É como se afirmasse aqui com insistência a sua própria pessoa, fazendo-o, além do mais, como um gesto religioso, algo que é estranho ao Evangelho. Gostaria de perguntar – e que isto não se entenda como uma blasfêmia: "Que poderia ter Cristo dito a Paulo?" Mas uma réplica razoável seria: Que é que tens a ver com isso? Procura tornar-te mais honrado! No teu presente estado, és totalmente incapaz de compreender o que possa ser, neste caso, a verdade.

                                     Nos evangelhos – segundo me parece – tudo é menos religioso, mais humilde, mais simples. Lá encontras cabanas; em Paulo uma igreja. Lá todos os homens são iguais e o próprio Deus é um homem; em Paulo já há algo de semelhante a uma hierarquia, honras e posições sociais. Isso é o que me diz, por assim dizer, o meu faro.

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                                    Sejamos humanos.

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                                    Acabei de tirar algumas maçãs de um saco de papel onde ficaram muito tempo. Tive de cortar metade de muitas delas e atirá-las fora. Mais tarde, quando estava a copiar uma frase que tinha escrito, cuja segunda metade era má, vi-a de repente com uma metade apodrecida de maçã. E é este o modo como as coisas se passam sempre comigo. Tudo o que comigo se cruza torna-se para mim uma imagem de que estou a pensar na altura (Haverá algo de feminino nesta maneira de pensar?).

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                                       Ao fazer este trabalho dou comigo numa posição idêntica à de um homem que luta sem sucesso para se lembrar de um nome; num caso destes dizemos: "Pensa noutra coisa que logo te lembrarás"- e de modo similar tive de pensar constantemente noutra coisa de modo a permitir que aquilo que eu tinha durante tanto tempo procurado me ocoresse.

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                                      A origem e a forma primitiva do jogo de linguagem é uma reacção; só a partir daqui se podem desenvolver formas mais complicadas.

                                   A linguagem – gostaria de dizer – é um aperfeiçoamento, "no princípio era a ação"

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                                    Kierkegaard escreve: Se o cristianismo fosse tão confortante e acolhedor, por que motivo teria Deus posto em movimento, nas suas Escrituras, o Céu e a Terra e proferido ameaças de castigos eternos? – Pergunta: Mas então porque é tão obscura a Escritura? Se queremos avisar alguém de um perigo terrível, fá-lo-emos propondo-lhe um enigma cuja solução é o aviso? – Mas quem é que nos diz que a Escritura é, de fato, obscura? Não será possível que fosse, neste caso, essencial "propor um enigma"? E que, por outro lado, a apresentação de um aviso mais direto tivesse, necessariamente, um efeito errado? Deus permite que quatro pessoas relatem a vida do Deus feito homem, em cada um dos casos de maneira diferente e com inconsistências – mas não poderíamos dizer: é importante que tal narrativa não seja mais do que medianamente plausível de um ponto de vista histórico, de modo a que este aspecto não se olhe como o essencial, o decisivo? De modo a que a letra não possa ser, mais fortemente do que é conveniente, objeto de fé e o espírito possa receber o que lhe é devido. Isto é, o que deves ver não pode ser comunicado, nem mesmo pelo melhor e mais rigoroso historiador; isso também te pode dizer o que te deve ser dito (Da mesma maneira que, em termos gerais, um cenário medíocre pode ser melhor do que árvores reais, porque estas podem distrair a atenção daquilo que é importante).

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