A Vida em Estiva

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"Triste de quem não conserva nenhum vestígio da infância."

Mário Quintana


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Longe deste mausoléu, além desta visão caótica do centro de São Paulo, numa região que se eximiu de toda a poluição e vícios da civilização durante muitos anos, encontra-se minha casa! Sim, pense em um lugar rodeado por morros verdes e árvores frondosas, grama, em vez do concreto, ar puro, em vez deste mormaço repugnante que reluto em respirar. Lembro-me perfeitamente do canto dos sabiás e bem-te-vis pela manhã, o cheiro do mato e a brisa fresca que passeava por entre as folhas das árvores a fim de dizer: "A chuva já se foi, que tal tomar um chocolate quente?". Lembro com muito carinho deste lugarzinho esquecido pela cidade grande, que eu considerava ser meu porto-seguro. Há uns cento e setenta quilômetros de distância daqui, atravessando estes prédios antigos e acabados de São Paulo, um lugarejo na região de Minas, a tão famosa cidade do morango, ah, sim, Estiva.

Quando eu tinha dez anos, se não me engano, já sofria desse impulso irracional de arrancar cutículas até machucar os dedos, usava roupas com estampas dos meus super-heróis favoritos, tinha o costume de não pentear o cabelo e por mais que meus pais dissessem para tomar cuidado em certas brincadeiras, eu sempre acabava me machucando por tentar fazer o que não podia, como tentar imitar os personagens das histórias em quadrinhos que tanto gostava de ler, ou em minha imaginação, e usar as ferramentas do meu pai para tentar criar meus próprios brinquedos! Quando a gente é criança, toda e qualquer situação é um mundo fantástico em potencial.

Era uma criança comum e saudável do interior, gostava de acordar cedo e brincar na rua de terra, empinar pipa, observar as nuvens, tentando desvendar que desenhos formavam, ao anoitecer apreciava o céu estrelado, privilégio este que os garotos da cidade grande não tinham, gostava de ler meus gibis e conversar sobre meus heróis favoritos com meus amigos na escola. Tive problemas com bronquite, mas depois de acatar um conselho do meu pai, que disse que seria bom nadar pelo menos duas vezes por semana no rio perto de casa, nunca mais senti falta de ar. Fora isso, minha saúde era perfeita, no entanto, havia algo destoante em minha aparência, que chamava a atenção de meus familiares e amigos: cabelos brancos, totalmente brancos!

Não é algo tão estranho assim, se você pensar bem. Existem muitos estilos que são muito mais esquisitos, não que eu defenda os extravagantes, e também nunca os repudiei, mas se foi assim que nasci não poderia fazer nada além de me aceitar, estou errado? A vida em Estiva era ótima, dormíamos o sono dos justos em um lugar calmo e repleto de pessoas amigáveis.

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Em uma noite de dezembro, após todas as enfadonhas propagandas de Natal e anúncios do Ano Novo, o apresentador do Jornal Nacional avisou que estava interrompendo a programação para dar um anúncio muito importante. Um tanto quanto atípico, e esse anúncio seria feito ao vivo, diretamente de Brooklin, Estados Unidos, por ninguém mais que o Professor Midrael Magno, um dos homens mais importantes daquela época. Formado em mais de cinco faculdades e dono de uma fortuna invejável na roda dos bilionários americanos. Tinha um sotaque britânico bem forte. Assim que ouvi algo a respeito do uso da conapsetividade, aproximei-me da televisão e aumentei o volume, observando com atenção a legenda em português. Magno estava usando um blazer cinza, camisa branca e gravata vermelha, sua voz era imponente e ele sequer piscava ao falar, mantinha o olhar fixo na câmera frontal, o que dava a impressão de que ele estava realmente me encarando. Embora expressasse uma postura autoritária, gesticulava com calma e sorria de uma maneira amigável.

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