Ela

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Do meu lugar, no último assento, eu a vejo passar na catraca e caminhar ao meu encontro, segurando uma caixa de papelão cheia de itens de papelaria, igual as mocinhas fazem nos filmes quando são demitidas. Mantém o equilíbrio andando devagar e segura a caixa, com apenas uma das mãos, para poder continuar segurando o aparelho celular no ouvido com a outra. Não consigo tirar meus olhos dela.

Negra, dona de pele impecável, que me lembra cacau e me faz pensar em um delicioso chocolate belga, daqueles bem caros, derretendo na boca. Dona de um corpo que, mesmo escondido dentro de um terninho cinza, dá para saber que tem curvas deslumbrantes. Bunda grande, peito grande, cinturinha fina, mãos delicadas, com unhas pintadas ao estilo francesinha. Make bem-feita, cabelos compridos, amarronzados, cheios de cachos em espirais perfeitos. E os olhos? Castanhos e enormes. Ela é tão perfeita que está conseguindo me fazer duvidar da minha própria heterossexualidade, mas não é por causa da sua beleza que meus olhos se recusam a sair dela.

O que atraiu minha curiosidade, de forma latente, são as lágrimas escorrendo em torrentes por suas bochechas. Está borrando o rímel, colega.

Por que você está chorando?

Encaro seus ombros, que tremem, quando senta na minha frente, e me pergunto o que aconteceu com a barrinha de chocolate. Será que esteve brigando com alguém? Recebeu uma notícia ruim? O namorado a traiu? Foi com quem? Pode ter sido com a melhor amiga. E se foi com uma colega de trabalho? Olha, se um homem realmente a traiu, só pode ser maluco.

Tem que mandar internar um merda desses.

Será que brigou com a mãe? O pai fugiu com a vizinha? Ela lascou uma das unhas à francesinha? Não paro de criar teorias.

Não é da minha conta, sei disso, mas a barrinha de chocolate ainda não deu nem uma olhadinha para trás e pode ser que não esteja nem aí para que eu a escute. O cachorrinho bem que pode ter morrido. E se foi o namorado traidor que morreu? Putz! EU NÃO CONSIGO PARAR.

Não tem nada que desperte meu interesse do lado de fora do ônibus e nós duas somos as únicas passageiras. Não tenho muito com o que me distrair. Depois de alguns minutos em agonia decido parar de lutar contra meus impulsos futriqueiros e tiro um dos fones de ouvido para escutar a conversa dela.

Estamos em um lugar público.

Ninguém pode me julgar.

— Ele terminou comigo ontem à noite! — Bebeu será? Só pode.

Ao menos o mistério foi desvendado. O motivo das lágrimas é um namorado.

— Sei que nós não tínhamos um relacionamento sério, mas porra, amiga, precisava mesmo terminar comigo por telefone? — Não, claro que não precisava. — TELEFONE! Ele me comeu por cinco meses e terminou comigo por TELEFONE, DÉBORA CRISTINA! — Grunhi indignada e não é para menos. Por telefone? Meu pai, que monstro!

Mas por que ele terminou, hein?

— Não sei, amiga! — Choraminga. — Fomos à festa de aniversário de uma garota, com quem fiz faculdade, sábado à noite. Estava tudo bem entre a gente. Fiquei abismada que o cafajeste topou me acompanhar numa boa e se enturmou com os outros caras, mas nem deveria. Ele é muito carinhoso e sempre se comporta como um verdadeiro sonho. Não sei em que momento virou pesadelo, contudo, quando entramos no carro para ir embora as coisas já tinha acontecido. Ele estava todo sério. Ele nunca é sério. — Pausa para escutar a amiga. — Não sei o que eu fiz para causar isso.

Pensa aí, que eu também quero saber!

— Daí para a frente, o imprestável sumiu e quando, finalmente, atendeu o telefone ontem à noite disse logo um: "Acabou, porra! Vê se para de me ligar!", antes que eu dissesse um mísero "alô". — Grosso para caceta! — Piora! — Jura? — Ele desligou na minha cara, assim que comecei a chorar, e não atendeu mais! Não que eu tenha ligado muitas vezes... — Deby e eu sabemos que isso é mentira. — Ok, talvez uma ou duas vezes — ainda é mentira, linda. — Eu deveria ter passado a noite toda grudada nele, em vez de ter ficado distraída babando no neném, garota. Dei bobeira! Será que algum dos caras falou para ele alguma coisa sobre meu passado?

Todos os beijos que roubei - DegustaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora