I - Nascimento de Tristão

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Há muito, muito tempo, depois da queda do Império Romano, mas antes da coroação de Carlos Magno como imperador do ocidente, reinava na Cornualha o rei Marcos. Tanto residia em Lantien, um solar situado na paróquia de Saint-Samson, como na fortaleza de Tintagel, cujo porto se abria para a costa ocidental da Cornualha.

Marcos procedia de uma ilustre linhagem; talvez descendesse até de um antepassado mítico identificado com um deus de forma animal, do qual herdara as orelhas de cavalo, que dissimulava cuidadosamente sob o gorro. O próprio nome, Marcos, significa cavalo em língua celta.

O rei chegara à idade madura sem ter arranjado mulher, mas uma das suas irmãs tinha um filho, o duque Audret, ao qual concedeu durante muito tempo toda a sua confiança. A irmã mais nova, Brancaflor, ainda não casara.

Marcos era nobre, frequentemente generoso, leal, corajoso, mas irascível, impressionável e de humor variável, capaz de uma violência extrema e até de crueldade nos seus súbitos arrebatamentos. Desempenhava com honra o seu lugar nos combates, quando tinha de comandar o seu exército, mas distinguia-se sobretudo na caça, a sua ocupação preferida. Entre os nobres cornualhenses seus vassalos, que lhe deviam conselho e ajuda, havia vários que pretendiam quase sempre lhe impor as suas vontades e que, para obrigarem-no a satisfazer os seus desejos, não hesitavam em ameaçá-lo com a rebelião: se Marcos não se submetesse às suas exigências, retirar-se-iam para os seus castelos construídos em rochedos elevados, cercados de altas paliçadas e de fossos profundos, e pegariam em armas contra ele. Marcos não era homem para enfrentá-los abertamente, e por mais de uma vez se inclinara perante as ameaças de turbulentos senhores feudais, sobre os quais a sua autoridade era precária. Preferia por vezes ceder, para depois retomar a superioridade sobre eles por meio da astúcia e ganhando tempo.

Marcos teve de defender-se várias vezes contra os ataques de outros reis cujas terras confinavam com as suas e o que faziam incursões na Cornualha. Mas era tal a sua fama de nobreza e valor que vários príncipes e barões lhe vinham oferecer os seus serviços e combater por ele. Tal foi o caso de Rivalino, filho do rei de Leônis. Tinha um porte tão altivo e distinguia-se por tais feitos que chamou a atenção de Brancaflor, a irmã mais nova de Marcos. Esta era bela e graciosa, de nobre figura, louvada e desejada entre todas, cortês e bem-educada ; por certo que não havia em toda a Grã-Bretanha uma rosa com tanta graça e frescura. Um dia em que vira Rivalino justar com outros vassalos, caiu em tal aflição e em tais cuidados, nela tão pouco comuns, que nem ela própria compreendia bem os movimentos do seu coração. Nesse dia, reconheceu que Rivalino ultrapassava todos os outros jovens em habilidade e valentia ; ao ouvir os homens e as mulheres gabarem sua audácia e coragem, ao contemplar durante longo tempo sua destreza a cavalgar e a justar, todo o seu pensamento foi para ele com o seu desejo. Em breve ambos trazem um mesmo cuidado e um mesmo segredo: ela ama-o com todo o coração e ele com leal querer. Os jovens eram excelentes em arranjar encontros sem atrair censuras: nem o rei nem ninguém na corte desconfiava de nada. Todavia, como Rivalino ultrapassava todos os homens em boas qualidades, se este tivesse declarado a Marcos o seu desejo de desposar a irmã, o rei teria de bom grado consentido na união. Mais ainda: sem que Rivalino lhe tivesse dito alguma coisa, o rei parecia por vezes favorecer os seus encontros com Brancaflor.

Algum tempo depois, Rivalino ficou ferido num combate ao serviço de Marcos e os seus homens transportaram-no para Tintagel, a fim de aí ser tratado. Brancaflor, pelo que ouvia dizer, julgava que os dias do seu amado estavam contatos, mas não ousava mostrar em público sua dor, com medo de revelar sua paixão. Desejava, pelo menos, visitar o ferido antes que este morresse. Usou de tanta prudência e astúcia que ninguém a viu entrar no quarto. Avançou para o ferido, sentou-se no leito onde este jazia e logo, de amor e pesar ao mesmo tempo, desfaleceu. Quando se reanimou, tomou-o nos braços e beijou-o ; os seus lábios devolveram-lhe a alegria e a força. Rivalino apertou-a longamente contra si e foi então que concebeu a criança cuja história é o assunto deste romance.

Tratado pelo mais hábeis médicos, Rivalino em breve se curou. Porém, mal tinha recuperado a saúde, chegam mensageiros do seu país: seu pai morrera e tinha de regressar imediatamente a Leônis para, por sua vez, aí reinar. Quando Rivalino, pronto a embarcar, veio despedir-se de Brancaflor, esta lhe disse: "Doce amigo, quanto mal me adveio por amor de vós! Se Deus não vem em meu auxílio e não me socorre, nunca mais terei alegria, pois aos sofrimentos antigos se vão juntar novas misérias. Após a vossa partida, poderia tentar retomar confiança e coragem, mas ficai sabendo que trago em mim um filho vosso ; ficando aqui, terei de suportar sozinha o castigo da minha falta." Rivalino fá-la sentar a seu lado, seca-lhe as lágrimas e diz: "Querida, ignorava o que acabais de me contar ; agora que o sei, quero que venhais comigo para o meu país é aí vos prestarei as honras que convêm à nobreza do nosso amor."

Era já noite cerrada quando Rivalino, após se ter despedido do rei Marcos, alcançou a nau onde Brancaflor, aproveitando a obscuridade, se lhe juntou. Os seus companheiros já aí estavam reunidos, prontos para zarpar: levantam o mastro, içam as velas, o vento lhes é propício. Chegam sem novidade ao porto de Kanoël.

De regresso ao seu país, onde sucedía ao seu defunto pai, Rivalino encontrou a terra em grande perigo, pois o duque Morgan aproveitara-se da morte do velho rei e da ausência do filho para uma vez mais invadir Leônis. Rivalino mandou chamar o marechal da sua corte, Rouault le Foitenant, que sabia fiel e dedicado. Confiou-lhe o que acontecera a ele próprio e à sua amada Brancaflor. "Sire -- disse o marechal --, vejo que não cessastes de crescer em mérito e em valor. Não podíeis ter encontrado mulher de mais alta linhagem que a irmã do rei Marcos. Escutai, pois, o meu conselho: pelo bem que ela vos fez, recompensai-a. Quando tivermos levado a nossa guerra a bom termo, uma vez libertos dos embaraços que nos causa o duque Morgan, celebrai umas bodas grandes e ricas e tomai-a publicamente por legítima mulher perante os vossos parentes e barões.

Mas desposai-a desde já perante a Igreja e à vista dos clérigos e dos leigos, como o exige a lei de Roma. Deste modo aumentareis a vossa honra." Assim fez Rivalino, e quando Brancaflor se tornou sua mulher, confiou-a à salvaguarda de Foitenant, enquanto ele próprio juntava-se ao seu exército.

Rouault conduziu a jovem esposa para uma fortaleza e lá a recebeu em sua casa com grandes honras, como convinha à sua classe. Rivalino ainda não regressara da guerra quando sua mulher deu à luz um filho, morrendo ao dar-lhe a vida. Antes de morrer, Brancaflor entregara a Rouault le Foitenant um anel precioso que lhe dera o rei Marcos e que Vinha dos seus antepassados comuns: este anel deveria ser entregue à criança, quando esta crescesse, como recordação de sua mãe e da sua estirpe materna. Quando Rivalino, algumas semanas mais tarde, voltou vitorioso da guerra, experimentou uma cruel dor e deixou-se afundar num profundo desespero. Depois de ter prestado as honras fúnebres à querida morta, enviou mensageiros ao rei Marcos para anunciar-lhe seu casamento com Brancaflor e, ao mesmo tempo, como esta perecera ao ter o filho.

Em seguida mandou batizar a Criança sem nenhuma demonstração pública de alegria e deu-lhe o nome celta de "Drustan": os contadores e a tradição popular transformaram-no em "Tristão", para melhor significar a tristeza dos pais no momento do seu nascimento, tristeza essa que não era mais do que um presságio dos transes que o destino reservava ao recém-nascido.

Tristão e IsoldaOnde histórias criam vida. Descubra agora