Um grande perigo ameaçava a terra do rei Marcos. O Morholt da Irlanda chegara a Tintagel numa nau com todos os seus companheiros. Era um guerreiro temível, de uma estatura gigantesca. O rei da Irlanda, que casara com sua irmã, uma feiticeira experiente, enviava-o para exigir de Marcos um tributo. Este tributo fora imposto à Comualha cerca de um século antes, no decurso de uma guerra infeliz. Em virtude deste tratado, os irlandeses podiam cobrar à Cornualha no primeiro ano trezentas libras de cobre, no segundo trezentas libras de prata fina, no terceiro trezentas libras de ouro, mas no quarto ano levavam trezentos rapazes e trezentas moças com a idade de quinze anos, tirados à sorte entre as famílias da Cornualha. Ora, há quinze anos o rei Marcos recusava-se a pagar esse tributo; assim, os enviados do Morholt vinham intímá-lo a entregar-lhes os trezentos rapazes e as trezentas donzelas para servirem o bel-prazer dos senhores irlandeses. Se um campeão do rei Marcos se oferecesse para combater o gigante a sós e o dominasse, a Cornualha seria libertada do tributo. Grande foi a dor do povo da Cornualha. De todos os lados elevavam-se gritos de dor. As mães lamentavam-se em voz alta: "Filhos, preferia que tivésseis morrido ao nascer ou durante a infância a ver os da Irlanda levarem-vos como servos! Mar pérfido e cruel, vento desleal, por que não afogasteis com borrascas e tempestades todos esses irlandeses nas vagas?" Tristão soube das exigências do Morholt; viu que os senhores baixavam a cabeça, transidos de medo, e que não diziam palavra. Concebeu então o intento de pedir ao rei Marcos para ser seu campeão contra o cruel gigante. Solicitou os conselhos de Gorvenal: "Filho -- disse-lhe o mestre -, falas com senso e coragem, mas o Morholt é tal combatente que não tem igual no mundo inteiro e tu és ainda jovem." Todavia Gorvenal acabou por ceder ao pe- dido de Tristão, e ambos concordaram que, antes de tudo, importava obter o consentimento do rei. Marcos resistiu primeiro, depois deixou-se ceder, mas, antes de tomar a decisão e de a declarar perante todos, convocou o conselho dos barões. Nesse momento, o próprio Morholt irrompeu pela sala onde reunia o conselho: pensava que as crianças já estavam escolhidas e que os cornualhenses, assustados com as ameaças dos seus mensageiros, lhas iam entregar sem discussão. Tristão levantou-se; numa voz calma e com um ar tranquilo, pediu ao rei Marcos que lhe concedesse como dom insigne o favor de travar a batalha com o irlandês: "Sire, e vós, senhores cornualhenses, o Morholt pretende ter o direito de levar os vossos filhos, mas eu quero provar em combate singular que não tem nenhum tributo a levar de vós." Marcos, ligado pela promessa, aprovou publicamente o propósito de Tristão.
Furioso, o Morholt ergue-se: tem a fronte alta e ultrapassa todos em estatura. Diz numa voz sonora: "Loucos, ouvi o que dissésteis e que não tendes a intenção de pagar o tributo. Aceito, pois, que um de vós me combata a sós e que, se eu não fizer triunfar com as armas o nosso direito ao tributo, vós dele sejais plenamente dispensados. E já que um de entre vós é tão ousado que me ouse defrontar e aceitar o meu desafio, que esse receba a luva que lhe estendo!"
Tristão não estava longe. Tinha um porte orgulhoso e um belo corpo. Avançou para o Morholt, pegou na luva e disse: "Morholt, esse sou eu!" Os irlandeses, primeiro estupefatos, recompuseram-se imediatamente e proclamaram que só aceitariam esse adversário desconhecido se fosse de tão boa linhagem quanto o seu senhor. Então Tristão exclamou: "Se o vosso senhor é filho de rei, também eu o sou; o rei Rivalino de Leônis era meu pai, o rei Marcos é meu tio, pois nasci de sua irmã Brancaflor e chamo-me Tristão!"
Perante esta revelação imprevista, o rei Marcos mergulhou ao mesmo tempo na alegria de encontrar um sobrinho e na angústia de arriscar logo a sua perda. Queria afastar a dúvida que o constrangia, desejando igualmente que o rapaz tivesse falado verdade! Mas Gorvenal avança por sua vez: "Sire, Tristão disse a verdade, e como prova eis um anel precioso que outrora oferecêsteis à vossa irmã Brancaflor e que Tristão recebeu de Rouault le Foitenant. senescal do defunto rei Rivalino. Vossa irmã havia-lho confiado ao morrer, com a missão de entregá-lo um dia a seu filho quando este tivesse deixado a infância." O rei pegou na jóia e reconheceu o anel, herança dos seus antepassados: era de ouro e engastado de pedras preciosas. Então Marcos fez sinal a Gorvenal para este se aproximar e perguntou-lhe em voz baixa: "Por certo, vejo agora que me dizeis a verdade; mas por que me haveis enganado primeiro afirmando-me que Tristão era filho de um mercador de Leônis?" "É verdade, sire, que há nisso uma notícia falsa, mas nem por sombras uma mentira, pois nem Tristão nem eu jamais tivemos a intenção de vos iludir nesse ponto. Não era mais que uma artimanha inventada por vosso sobrinho, pois ele entendia ganhar somente vossas boas graças e amizade pelos seus próprios méritos, seu valor e seu fiel serviço: eis a razão por que quis, primeiro, deixar-vos ignorar o estreito parentesco que o liga a vós." Marcos, com um gesto da mão, deu a entender que estava satisfeito com essa resposta e que compreendia a conduta do sobrinho. No entanto esperava poder ainda desviá-lo de um empreendimento que achava não só perigoso. mas também temerário e manchado de desmesura. Todas estas objeções não tiveram nenhum efeito sobre a determinação de Tristão: demonstrou a seu tio a necessidade de vingar a honra da Cornualha e de libertar o reino de um tributo vergonhoso e intolerável. Finalmente, Marcos resignou-se a confirmar o dom que concedera a Tristão, antes mesmo de ter reconhecido nele o sobrinho, de defrontar o Morholt em combate singular. Como sinal perceptível dessa honra e em símbolo de investidura, o rei entregou a Tristão, perante toda a assistência, uma espada de grande preço, forjada não há muito por um célebre ferreiro e que havia pertencido ao próprio pai de Marcos.
Segundo um antigo costume celta, ficou combinado entre o Morholt e Tristão que o combate se efetuaria num certo dia, a uma certa hora e num certo lugar; na ilha Saint-Samson, situada em frente a Tintagel e a pouca distância da costa. Esta ilha era coberta de árvores com espessa folhagem e nenhum ser vivo aí habitava, de modo que não haveria ninguém para assistir ao combate ou para tentar forçar o destino socorrendo um ou outro dos adversários. Assim só mesmo Deus decidiria a sorte das armas e manifestaria de que lado estava o direito. Todos os conselheiros do rei ratificaram este acordo.
Na manhã do dia fixado, Tristão apresenta-se no palácio do rei: Marcos afivela-lhe o elmo, cinge-lhe a espada, recomenda-o a Deus; todo o povo reza pelo bravo. Um pouco antes da hora fixada, Tristão sobe sozinho em uma pequena barca e, à força de remos, empurra-a para a ilha. Por seu lado, o Morholt deixou o navio e toma lugar noutra barca para ir ter com Tristão à ilha, enquanto os outros irlandeses ficam a bordo para aguardar de longe o desenlace do combate. Tristão salta para a margem e, com o pé, empurra a barca para o mar. O gigante, no mesmo instante, amarra a sua a um tronco. "Por que é que não amarraste a tua barca como eu fiz à minha?" --- pergunta o gigante. "Para quê? --- responde Tristão. --- Para levar o vencido morto ou ferido de morte, uma única barca chega ao vencedor." A multidão dos cornualhenses, concentrada na margem, tem os olhos fixos no local da batalha e procura adivinhar-lhe as peripécias. O Morholt, admirando o valor e a valentia do adversário, propõe-lhe um acordo: "Renuncia à batalha; dar-te-ei em troca a minha amizade e partilharei contigo os meus tesouros." Tristão recusa com desdém. Ambos começam o combate a pé, ferozmente erguidos um contra o outro e brandindo as lanças. "Fica sabendo --- disse o Morholt a Tristão para assustá-lo -- que cada ferimento da minha lança é mortal; a ponta está envenenada por artes de magia e não encontrarás nenhum médico que te cure." Em resposta, Tristão assenta um rude golpe no lorigão do gigante, mas o seu ferro não consegue trespassar as malhas. O Morholt riposta com um terrível golpe da sua arma: atravessando a couraça do bravo, a ponta envenenada enterra-se na anca e penetra até o osso, mas a haste quebra-se e voa em pedaços sob a força do choque. Tristão puxa logo da espada, o Morholt desembainha a sua e as duas lâminas entrecruzam-se soltando faíscas que a multidão por vezes avista da margem. Subitamente, a espada de Tristão embate com tal violência no capacete do gigante que a lâmina corta o metal e se lhe enterra no crânio. Tristão tenta arrancar-lha, mas quando a sacode com toda a energia, o aço range e quebra-se; a lâmina, ficou fendida e um fragmento de aço continua enterrado no crânio do gigante. Ferido de morte, o Morholt foge com um grito terrível e vem abater-se na margem à vista dos seus homens, que ficaram no navio. Tristão persegue-o com a sua chacota: "Conquistaste então o tributo da Cornualha! Leva-o; nunca mais virás reclamá-lo!" Entretanto o Morholt é recolhido pelos companheiros, que o içam, ainda com vida, para a nau e se fazem à vela com ele para a Irlanda.
Tristão, por seu lado, subiu para a barca do Morholt, soltou-a da margem e aproou para a costa. Quando o povo da Cornualha a viu perfilar-se no mar, reconheceu o esquife do gigante irlandês, mas quando a barca emergiu do cimo de uma vaga, mostrou um guerreiro que se erguia na proa, os braços em cruz: era Tristão. Imediatamente vinte barcas lançaram-se ao seu encontro e os rapazes jogaram-se ao mar para escoltá-lo. O bravo, de um salto, lançou-se no areal, e as mães deitavam-se de joelhos para beijar-lhe os pés. Marcos recebeu-o com manifestações de alegria e levou-o imediatamente para o seu palácio, porém mal Tristão entrou, seu vigor juvenil foi por sua vez vencido pela força do veneno, e ele caiu sem sentidos.