VI - Vitória sobre o dragão da Irlanda

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No dia seguinte, ao acordarem, Tristão e os companheiros ouviram gritos horríveis de homens e de mulheres elevarem-se nas ruas de Weisefort: todo o povo corria para o mar como que a fugir de um misterioso perigo. Esse terror era causado por um dragão que infestava o país; todos os dias descia à cidade e aí fazia grandes devastações. A todos os que conseguia alcançar, matava com as chamas que vomitava. Em todo o reino, não havia ninguém suficientemente forte nem suficientemente bravo para lhe ousar fazer frente; mal o ouviam aproximar-se, todos, nobres, burgueses e vilãos, fugiam à porfia para evitar a morte. O rei Gormond mandara proclamar por toda a sua terra que, se houvesse um homem bastante corajoso para matar o dragão, lhe daria a filha em casamento e metade do reino, desde que fosse de nascimento nobre. Havia confirmado este compromisso com cartas seladas e ordenara que fossem li das em todos os lugares pelos arautos. Muitos, aliciados com esta promessa, haviam tentado o empreendimento, mas o dragão matara-os e já não estava ninguém que ousasse esperá-lo na estrada que seguia; os mais aguerridos logo deitavam a fugir e escondiam-se. Tristão, ao ver fugir os irlandesa-s, interrogou-os e ficou sabendo tudo acerca do dragão e da promessa feita a quem o matasse. Indagou do Covil onde o monstro pernoitava, nos rochedos, e da hora em que descia à cidade. Depois, esperou até à noite do primeiro dia sem nada dizer a ninguém do seu desígnio, e ele próprio preparou o corcel e as armas para o combate. No dia seguinte, aos primeiros alvores da manhã, o dragão, segundo o seu costume, arremeteu em direção à cidade. Tristão, mal ouviu o grito estridente do animal, cavalgou ao seu encontro e nenhum dos seus companheiros disso se apercebeu. No caminho encontrou um bando de homens armados que fugiam a toda velocidade dos cavalos, agarrou um deles pelos cabelos ruivos e obrigou-o a parar. Ele contou-lhe que o monstro os seguia e disse-lhe: "Voltai para donde viestes, senão o dragão não tardará a matar-vos. " Tristão não ligou a este conselho de covarde e foi ao encontro do monstro. O dragão tinha dois cornos na testa, as orelhas largas e peludas, os olhos cintilantes à flor da cabeça como carvões ardentes, o alto focinho erguido como o de uma serpente fantástica, a língua de fora, cuspindo por todas as partes fogo e veneno. O corpo escamoso, garras de leão e a cauda de uma serpente. O monstro viu Tristão: ruge e incha o corpo. O bravo junta as forças e, cobrindo-se com o escudo, pica o corcel com tal vigor que o ginete, todo eriçado de medo, salta contra o animal. A lança de Tristão embate nas escamas e voa em pedaços. Imediatamente, o bravo desembainha a espada, brande-a e vibra um golpe terrível na cabeça do dragão, mas sem mesmo lhe arranhar a pele. O monstro sentiu a pancada: lança as garras contra o escudo, enterra-as nele e faz voar as presilhas. A peito descoberto. Tristão ainda o procura com a espada e atinge-o nos flancos com um golpe tão violento que o ar vibra. Em vão: não o consegue ferir. Então, o dragão vomita pelas narinas um duplo jato de chamas: o lorigão de Tristão fica da cor do carvão, o cavalo cai e morre. Mas logo Tristão se levanta e enterra a ponta da espada na garganta do monstro, e a penetra inteiramente, lhe trespassando o coração. O dragão solta uma última vez o seu terrivel grito e morre. Quando Tristão o viu morto, cortou-lhe a língua até a raiz, pois queria conservá-la como um troféu da vitória, e dissimulou-a no calção, entre a carne e o tecido. Em seguida, completamente aturdido pelo fumo acre que o sufocava, dirigiu-se para o charco cujas águas calmas brilhavam no vale, perto de um bosque, para aí beber. Quando chegou à beira da agua, a língua aqueceu contra o seu corpo. O veneno que dela se escapava infectou-lhe o sangue e paralisou- lhe os membros. O corpo tornou-se débil, livido e tumefacto. Nas altas ervas que bordejavam o pântano, o herói caiu inanimado. Aí ficou estirado, impotente para ajudar-se a si próprio, a não ser que algum viandante o viesse socorrer.

Ora, o rei Gormond tinha um senescal cha- mado Aguinguerran, o Ruivo, presunçoso e de má índole, dissimulado, manhoso, mentiroso e velhaco. Afirmava amar a jovem Isolda e todos os dias, na esperança de obtê-la para mulher, armava-se contra o dragão. Mal via o monstro, fugia a sete pés, e tão covardemente que, se lhe oferecessem nesse momento todo o ouro da Arábia, nem tentaria voltar-se. Aguinguerran era o fugitivo que Tristão, no caminho da aventura, tinha parado, agarrando-o pelos cabelos. Os outros fugitivos eram os homens do senescal. Ao fim de algum tempo, Aguinguerran ousou arrepiar caminho para ver o que se havia passado. Encontrou o cadáver do dragão e não viu o cavaleiro que o parara e interrogara, mas unicamente seu escudo abandonado no chão e o Corcel morto; pensou que, antes de morrer, o monstro matara e devorara o cavaleiro. Então, cortou com a espada a cabeça do monstro, a fun de apresenta-la ao rei Gormond e de reclamar para si próprio a bela recompensa prometida. Regressou à cidade e nela entrou a galope, segurando na ponta do braço a cabeça sangrenta do dragão e gritando: “Matei-o! Matei-o!" Quando entrou no salão do palácio, disse ao rei: “Sire, libertei o reino, vinguei os teus homens e o teu dano, paga-me agora, dá-me Isolda, tua filha; é a recompensa que me pertence, se não te queres desonrar renegando tua palavra!" O rei, vendo a cabeça do monstro, não se recusou a fazer justiça ao pedido do senescal, mas, surpreendido com o fato de tal covarde ter realizado tão grande proeza, impôs-lhe um prazo: "Quero reunir o conselho dos meus barões antes de te dar a resposta e de manter, se houver razões, o que prometi." Quando se espalhou a nova de que a princesa lhe seria dada e foram aos aposentos das mulheres contá-la a Isolda, esta se encheu de angústia e de dor, pois sentia somente aversão e desprezo pelo senescal: mesmo que lhe oferecessem como presente de noivado o império do mundo, não o poderia amar. Disse à sua mãe: "Nunca consentirei no que quer meu pai: não casarei com esse homem! Não, Deus não me deseja tanto mal que me obrigue a aceitá-lo! Prefiro matar-me com um punhal a suportar a vergonha de ser entregue à mercê de um velhaco e de um covarde! Donde lhe teriam vindo a coragem, a força e o valor perante o monstro, uma vez que sempre se mostrou medroso e poltrão perante os homens? É uma mentira inventada por ele para eu lhe ser entregue. Mãe, Vinde comigo: vamos ver o cadáver do monstro; temos de encontrar, morto ou vivo, aquele que o matou." "Pois sim, querida filha. E que Deus nos ajude." Saíram do castelo por uma porta secreta que dava para o pomar, unicamente acompanhadas pelo lacaio Périnis e por Brangia, a criada. Do pomar, um estreito atalho conduziu-as ao campo, onde finalmente encontraram o dragão morto e o cavalo, estendido na areia, queimado e denegrido. "Deus sabe -- disse Isolda -- que o senescal jamais montou este cavalo! Não está ferrado nem aparelhado segundo o costume da Irlanda... O estrangeiro a quem este cavalo pertence é, sem dúvida alguma, quem matou o dragão; mas quem sabe o que lhe aconteceu?" Isolda, com a mãe, procurou tanto que descobriu o herói desfalecido à beira do pântano, entre as altas ervas. Ainda respirava. "Encontramos! " -- exclamou Isolda. Depois de as duas mulheres terem prestado ao desconhecido os primeiros socorros, este voltou a si, abriu os olhos e disse: "Santo Deus! Nunca senti tal torpor! Quem sois? Onde estou?" "Não temas nada — respondeu a rainha. — Este mal, se Deus quiser, não se agravará." Périnis e Brangia trans portaram o ferido tão secretamente para os aposentos das mulheres que ninguém no palácio disso se apercebeu. Aí, Isolda e a mãe tiraram-lhe a armadura e encontraram no calção a língua do monstro, A rainha preparou remédios para neutralizar a ação do veneno: colocou no corpo do desconhecido um emplastro e deu-lhe para beber uma infusão de ervas mágicas que lhe proporcionou um grande alívio. Não havia outro médico além da rainha, assistida pela jovem Isolda, que o tratava e servia.

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⏰ Última atualização: Dec 03, 2014 ⏰

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