1. A Tempestade

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Todo o vilarejo de Hamadori estava em movimento, depois de meses de negociação, as famílias mais poderosas da província de Fukushima iriam unir suas forças com o casamento de Keiji Date e Kido Ashina. Keiji nunca foi à primeira escolha para o clã Ashina, mas depois da morte do mestre Date, Keiji assumiu todos os negócios da família e por consequência o controle de metade da província, atacando quem não se adequasse aos seus interesses. Então, o casamento passou a ser mais do que uma união de famílias, mas uma questão para manter a paz entre os clãs e o pouco de poder restante ao clã Ashina.

Ao contrário do que poderia ser para muitas noivas, este dia estava longe de ser especial para Kido por vários motivos. Primeiro, ela nunca sonhou em se casar, seus sonhos sempre estiveram muito longe de Fukushima, quem sabe até do Japão. Ser sonhadora não era uma qualidade muito admirada nas mulheres naquela época, ainda mais para uma Ashina. O segundo motivo era a escolha do noivo, Keiji era um ser desprezível que tratava mal a todos e achava que estava acima do bem e do mal. O pouco que Kido conhecia sobre seu noivo era suficiente para saber que sua vida não seria nada agradável, que ela seria apenas um serviçal e um ventre para os seus herdeiros. Ela chegou a pensar em fugir, mas o desgosto e a vergonha que causaria para o seu pai fizeram-na mudar de ideia e abandonar o plano de fuga junto com todos os seus sonhos de conhecer o mundo.

O lugar escolhido para a cerimônia, um templo a beira-mar, entre os maiores e mais bonitos do vilarejo. Era muito grande, construído em dois andares em tons de vermelho e preto, com adornos nas pontas do telhado em formato de dragões e, quem olhasse de longe, ficava com a impressão que os dragões estavam protegendo o templo em posição de ataque. Agora imagine isso em um gramado perfeito terminando em uma areia branca da bela praia de Koya. Keiji sabia que esse casamento seria a forma mais fácil de mostrar sua grandiosidade e atrair a simpatia das pessoas da província e por isso, não estava economizando em nada. O melhor em decoração, em comida e muita bebida para deixar esse dia na lembrança de todos. A escolha da noiva fazia parte dessa estratégia para cair no gosto das pessoas, já que a família Ashima sempre foi querida e com fama de ser boa para todos, independente de posição social. Depois do casamento, Keiji poderia seguir cuidando dos seus negócios sabendo que teria alguém para manter sua imagem limpa.

As principais famílias de Fukushima foram convidadas, seria um casamento para mais de mil pessoas, até um viking dinamarquês, que tivera problema com sua embarcação, estava entre os convidados. Sem contar parte da praia que estaria aberta para quem quisesse acompanhar de longe a cerimônia, desfrutar um pouco de comida e dos muitos barris de vinho de arroz de graça. Na última semana, parecia que todos os caminhos seguiam para esse casamento, as estradas estavam movimentadas como nunca, com convidados, comerciantes, gueixas e quem tivesse algum interesse de lucrar de alguma forma com essa cerimônia.

Para Kato, esse casamento era a chance de conhecer algum samurai de verdade, e o fato do seu pai ter a chance de trabalhar na cozinha do casamento, poderia criar a oportunidade desse sonho se tornar realidade. Aos 14 anos, todo menino sonhava ser um samurai, mesmo sem ter a real noção dos riscos e sacrifícios que essa vida exigia. Mas pra quem vivia com um pedaço de madeira nas mãos, lutando com inimigos imaginários, qualquer sacrifício valeria a pena para não ser um simples pescador como seu pai Gifu.

Apesar do céu azul, as ondas estavam mais fortes que o normal para aquela época do ano, que normalmente significava que havia alguma tempestade se aproximando. Kido observava pela janela as ondas estourando na praia, enquanto estava sendo preparada para a cerimônia. Faltava muito pouco e a chance de algo mudar seu destino era praticamente nula, por isso a tristeza estava tão clara em seu olhar que nem percebeu sua mãe entrando pela porta.

- Filha, está na hora! Já está preparada?

Kido respirou fundo, se levantou e respondeu:

- Sim, vamos acabar com isso logo.

O templo estava completamente tomado, mas Kato tinha conseguido um canto no segundo andar onde dava pra ver tudo que estava acontecendo na cerimônia sem ser notado e provavelmente expulso do local. O noivo já estava no altar, com um quimono branco, com detalhes em azul e verde, uma sapatilha branca trabalhada com uma tira de couro muito bonita. Mas perto da noiva que acabara entrar, Keiji parecia um maltrapilho aos olhos de Kato. Ele nunca havia visto uma mulher tão bela, com um quimono longo de seda azul claro com desenhos bem suaves em branco, seu cabelo estava muito brilhante e amarrado de uma forma que fazia lembrar uma coroa. O menino estava tão deslumbrado com a noiva e com a beleza da cerimônia, que o barulho do sino tocando quase o matou de susto. E após se recuperar, correu até a janela e ficou aterrorizado. O céu que há poucos minutos estava azul, ficou negro e o mar revolto estava a poucos metros do templo. Um furacão estava chegando.

As pessoas entraram em desespero, quem estava do lado de fora, fazia de tudo para entrar e quem estava dentro, fazia de tudo para se proteger e fechar qualquer entrada. Keiji começou a gritar ordens desesperadas e seus homens começaram a bloquear portas e janelas com tudo que tinham em mãos. Não tinham outra escolha, o templo já tinha passado por outras tempestades e resistido, só restava esperar e quem sabe, depois da tempestade, finalizar a cerimônia. Para Kido, era uma mistura de alívio e medo, o milagre que ela sonhava poderia se tornar um pesadelo ainda pior.

O barulho do vento estava quase tão aterrorizante quanto os gritos das pessoas do lado de fora. Já havia se passado quase duas horas desde o toque do sino e Kato, além de assustado, estava preocupado com seu pai. Ele estava fora, mas com certeza deveria estar em uma das casas próximas usadas para o casamento. Se o seu pai estivesse trabalhando como deveria, estaria seguro, mas se havia escapado com alguma garrafa de vinho de arroz, como sempre fazia ao ter acesso fácil a bebidas, poderia estar em perigo.

O tempo foi passando e o barulho da tempestade e dos gritos foi diminuindo. Bem longe do templo, Gifu acordou no meio da lama que antes era um casebre de madeira, onde tentou se esconder. Não sabia se estava desorientado por causa dos ferimentos ou por causa das três garrafas que havia entornado. Começou a ficar preocupado com Kato. Será que ele estaria bem? Será que ele havia saído para procurá-lo? Levantou-se devagar e olhou em volta o vilarejo destruído, só algumas casas estavam de pé, havia corpos por todos os lados e conseguiu ver bem distante o templo ainda inteiro.

- Tomara Deus que Kato ainda esteja por lá!

Disse Gifu fazendo força para se manter em pé. Andava em direção ao templo e a destruição crescia em seu caminho sem sinal de vida, homens, mulheres, crianças e animais mortos. Viu um homem morto empalado nos galhos de uma árvore, que o fez botar todo o álcool pra fora. Quando se recuperou, viu o primeiro sinal de vida, parecia ser um menino, um pouco mais novo que Kato, debruçado no corpo de uma mulher que deveria ser sua mãe. Gifu foi devagar até o menino para ver no que poderia ajudar e colocou a mão cuidadosamente em seu ombro. Nunca em toda a sua vida, ele viu algo tão assustador, o menino estava com o rosto dilacerado de um lado, seus olhos esbranquiçados e a boca coberta de sangue. A mãe morta no chão estava com um pedaço de madeira ficado em um dos olhos e a barriga exposta com várias feridas em formato de mordida. Gifu não conseguia acreditar no que estava testemunhando, o menino estava devorando o corpo de sua mãe.

Saiu cambaleando sem direção e desesperado, mas ao olhar para o lado, viu um homem em cima de um cavalo morto, mordendo o pescoço do animal.

- Pare! O que você está fazendo?

Ao ouvir o grito, o homem se levantou e começou a ir à direção de Gifu. Seus olhos tinham o mesmo tom esbranquiçado do menino, além de um corte muito grande em sua barriga, tão grande, que parte do intestino estava saindo do corpo. Desesperado, Gifu começou a correr em direção ao templo, só conseguindo pensar em Kato e no que poderia estar acontecendo com aquelas pessoas. Ainda mais desorientado, tropeçou e caiu em cima de um morto. Sentindo o sangue gelado na sua pele, levantou-se rapidamente e seguiu seu rumo. Mas ao olhar para trás, percebendo o mesmo corpo morto se mexer e começar a se levantar. Então, entendeu o que estava acontecendo: os mortos estavam voltando à vida.

Algumas horas após o fim da tempestade, resolveram abrir a porta do templo para ver os estragos e ver o que poderiam fazer, mas tomaram um grande susto. Deram de cara com um homem coberto de lama e sangue, com um cheiro forte de bebida e repetindo uma frase sem parar:

- Kato, Kato, osmortos... Eles estão voltando!


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