2. Inferno Astral

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Com um pouco mais de uma semana indo e voltando sozinho, acabei decorando o trajeto de casa até o colégio. Gostaria de dizer que me acostumei a ele, mas estaria mentindo, porque desde as avenidas movimentadas, passando pelas palmeiras gigantes até o CEEF; a rua de casa era o único lugar onde eu aproveitava meu anonimato. Pelo menos até aquela tarde.

— Fala aí, primeiro-damo do CEEF! — Aquela voz combinada ao cabelo longo, uma touca e o braço branquelo rabiscado por pelos ralos eram inconfundíveis.

— Marcos? Tá fazendo o que aqui? — Ainda estava na minha rua quando ele apareceu.

— Talvez eu more aqui? Qual é, Feu, me conhece há quase duas semanas e não percebeu que sou seu vizinho?!

Feu? Eu não saio muito de casa, tá bom?! Não tinha como saber.

— Felipe MorFEU Bittencourt. É o seu nome, não é? — disse enfatizando a sílaba que a partir daquela semana se tornaria o meu apelido.

— Como sabe?

— Sua namorada, ué. — Foi ali que eu compreendi as proporções que aquele beijo ganhou. E sabe o que eu podia fazer a respeito? Exato! Nada!

— Stephanie?

— Stephanie do nono ano, irmãozinho! Mandou bem, hein! Aliás ela me pediu pra te dar um recado.

No resto do caminho até a escola, conversamos sobre a corrida que aquele garoto me falou e sobre como Stephanie queria que eu participasse. Marcos explicou que o prêmio era o apadrinhamento, uma espécie de proteção de novatos por parte dos veteranos. Aparentemente minha amada não estava afim de me dar o prêmio de graça, seja lá o que aquela "proteção" significava. Eu não liguei para aquilo. Até aquela tarde.

Quando chegamos o sinal já havia tocado, então subi direto para a primeira aula. As poucas pessoas além de mim a caminho das salas pareciam me olhar de cima a baixo. Confesso que no começo foi estranho, nunca tanta gente prestou atenção em mim ao mesmo tempo, e ao final da primeira semana quase pedi para mudar de escola. Só havia uma coisa pior que ser o centro das atenções — passar o resto do ano escutando Melissa reclamar sobre como eu não valorizei o esforço dela para me arranjar uma vaga na "melhor escola de ensino fundamental do país".

Entrei e me sentei em uma das poucas carteiras vazias no fundo da sala. Aquela era uma professora tranquila, passava quase um tempo inteiro de aula escrevendo coisas no quadro para finalizar com explicações dinâmicas. Metade da lousa estava preenchida com sua caligrafia, mas com aquele ritmo lento de escrita não foi difícil alcançá-la — pelo menos até ela começar a apagar as primeiras partes para escrever mais ainda. Minha mão estava cansada quando ela começou a falar.

— Boa tarde, turma! Como nós havíamos conversado semana passada, nesse bimestre vamos estudar sobre a cultura e alguns conceitos relacionados a ela. Então hoje eu coloquei no quadro um resumo sobre etnocentrismo e relativismo cultural, mas queria aproveitar esse conteúdo como gancho pra fazermos uma aula menos teórica. Na antropologia, etnocentrismo é o nome que damos a uma visão de mundo que prioriza uma cultura ou etnia em detrimento das demais. Esse é um fator de peso na geração de preconceitos e descriminações, que são problemas muito evidentes em nossa sociedade. Tentando explicar da maneira mais fácil possível, o preconceito seria uma ideia, uma ideia não muito bacana, e a descriminação seria a manifestação palpável desta ideia: um ato de agressão verbal ou física, só para exemplificar. Esse é o tema do nosso trabalho de semana que vem, coisa bem simples, mais pra ajudar na nota de vocês. Em duplas, eu quero que tragam algumas informações sobre os tipos de descriminação e exemplos de como elas ocorrem; além de ideias sobre como podemos combatê-las.

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