Sequei meu cabelo esfregando-o com a toalha. Me vestia quando acidentalmente vi meu reflexo sobre o espelho quebrado. Fazia tempo que não olhava para ele, tanto tempo que eu nem lembrava desde quando a pele era tão roxa ao redor dos meus olhos. Passei a notar quando aqueles vacilões me apelidaram de guaxinim.
Já quase todo arrumado, segui pelo corredor. A porta do quarto estava aberta, através dela vi ele em cima da cama roncando feito um porco. Na sala, Melque assistia televisão. Convenci minha mãe a pagar a TV a cabo, era a única coisa que deixava ele mais calmo depois das confusões. Estava ali totalmente entretido com um episódio onde o Bob Esponja brincava de invadir os sonhos de seus vizinhos. Lívia estava sentada ao lado dele, concentrada me assistindo calçar o tênis. Percebi a apreensão em seu olhar, era quase como se me perguntasse "como você é capaz de sair e nos deixar aqui sozinhos com ele?"
— Não me olha assim! Você sabe que hoje o time começa a treinar lá na escola. Eu juro que ficaria aqui se não fosse por isso.
— E se ele acordar? — ela perguntou.
— Não vai, não em tão pouco tempo, eu acho.
— Eu quero assistir iCarly. — Fez bico.
— iCarly só começa quando eu voltar. Já sabe o esquema, né?! Se ele perguntar...
— Eu não sei onde a mamãe foi...
— Isso! Eu vou deixar a porta destrancada. Se ele ficar zangado, você vai pra casa da tia Val com o Melque. Agora tenho que ir. — Afaguei seus cabelos e saí.
Desci as escadas saltitando. Morava no quinto andar, então aquele era o melhor e o único aquecimento que eu poderia fazer quando me atrasava para um jogo. Passei pela entrada do prédio empesteada pelo cheiro do cigarro que aqueles moleques dividiam. Era uma coisa comum nas redondezas, mas eu nunca me acostumaria com aquela merda de cheiro. O CEEF ficava apenas algumas quadras após os apartamentos. Nos dias comuns, sempre ia pelo caminho mais seguro — uma rua sinuosa que aumentava o tempo do trajeto — mas naquela tarde eu só queria que as coisas acontecessem.
Dobrei à direita e desci a ladeira. Os caras olhavam para mim, eu sei que olhavam, e eu nunca encarava de volta. Era cria dali, mas às vezes isso não significa porra nenhuma pra eles. Continuei. Lá embaixo no fim da rua, o CEEF começava a ganhar forma sob o pôr do sol. Atrás do ginásio e da piscina tinha um terreno baldio onde a grama batia na altura do joelho. Em algum lugar ali embaixo ficava a passagem para o lado de dentro, e era assim que eu entrava e saia a hora que quisesse.
Quando cheguei, o professor deu a bola em minhas mãos. Eu sempre era o primeiro a chegar, e aquilo era quase um ritual entre nós dois. Se dependesse dele eu seria titular do time, mas infelizmente essa era uma decisão que os veteranos tomavam — sem espaço para sugestões externas. Só que aquela, meu amigo, era a tarde em que cheguei determinado a provar para os caras que merecia um lugar entre eles. Foi com essa determinação que chutei a bola que atingiu um moleque na cabeça e jogou ele no chão.
— Foi mal, mano!!! Cê tá bem? — perguntei o ajudando a levantar.
Foi uma das coisas mais estranhas que aconteceram na minha vida. Ele era o tipo de moleque que me enojaria, cara de mauricinho, jeito de filhinho de papai, cabelo ondulado na altura do ombro. Era algo só dele, uma coisa que até hoje não sei explicar. Como se... tivesse vivido isso antes. Eu me senti no dever de ajudar ele, e de algum jeito ele parecia saber disso.
— Tô... eu acho...
De repente tudo ficou mais zoado ainda quando ela apareceu — a Stephanie do nono ano, aquela que andava rebolando com o cabelo batendo no bumbum. Veio até a gente e agarrou o novato pelo braço. Ela chegou e levou ele sem me notar ou se preocupar com se eu estava falando ou não com o cara. Fiquei ali parado, digerindo o que aconteceu, tentando disfarçar o quão sem graça eu fiquei. Então eles chegaram e minha paz acabou — Chris, Johnny e Marquinhos. Em instantes os dois times estavam em campo para o início da primeira partida.
Eles três, como veteranos, eram titulares; eu atuava como pivô e capitão dos reservas. Nem sempre foi assim. Até o ano passado os dois times eram formados só por veteranos, mesmo que a maioria deles não dessem a mínima para isso tudo. O resultado? Várias derrotas consecutivas até chegar ao ponto do professor ameaçar acabar com a equipe se não houvesse mudanças. Quase todos os moleques do colégio jogavam de vez em quando, muitos deles com mais talento que os jogadores oficiais. Roger via isso a todo momento e decidiu convidar aqueles que considerava os melhores para se juntar à família — incluindo alunos "novatos", como eu. Óbvio que os malucos tentaram manter a hierarquia! No time titular apenas veteranos eram bem-vindos.
Com ajuda dos moleques, ganhamos de sete a um daqueles bostinhas. Eles até poderiam manter aquela regra ridícula, mas a cada oportunidade que tivesse eu mostraria para todo mundo o fracasso que eles eram. Após o fim da partida, Chris queria me comer vivo, Johnny estava calado e Marquinhos veio falar comigo.
— Mandou bem hoje, xinim! É disso que o CEEF precisa, de entusiasmo!!!
— Se precisasse tanto me colocariam como titular...
— Ei maninho, pera aí! Cê sabe como é, né?! Já disse que se fosse por mim, você já era nosso capitão, mas sabe das regras.
— Você podia me apadrinhar...
— Maninho, de boas, não quero que fique chateado comigo, mas você sabe que não rola. Cê tá ligado né?! Marquinhos Cobain, a voz que comanda a rádio mais quente do Vale! — Ele fez aquela voz escrota que usava para falar nos intervalos. — Você vai ter que se provar sozinho, amigão. Na virada do mês tem mais uma corrida. É a sua chance,!!! Vai lá e vence todos el... Uoooooou!!!!! Olha aquilo ali, meu bom!
Ele interrompeu a frase e me virou pelos ombros para ver. Se qualquer um contasse eu não acreditaria naquilo: era a Stephanie do nono ano dando uns pegas no novato em que eu acertei uma bolada. Era típico dela, tacar a bomba e sair, deixando o pessoal comentando o estrago. O garoto ficou desnorteado, é claro. Deixamos a quadra ao mesmo tempo, ele caminhava com na mão na cabeça em direção a saída do colégio. Me aproximei.
— Ainda tá doendo, cara?
— Ahn?? Não!!! Tá de boas, relaxa. — Sorriu sem graça.
O silêncio reinou entre os poucos passos até o portão do estacionamento. Eu precisava falar com ele. O tempo estava acabando, conseguia visualizar ele indo embora ao cruzarmos o portão, mas ao invés disso ele parou ali. Eu continuei andando, ele simplesmente parou ali. Ele não vai embora? Tentando agir naturalmente, lutei contra meu próprio e parei a alguns metros dele, me encostando nas grades que cercavam o estacionamento. Só eu e ele. Evitava me olhar, mas era nítido que estranhou minha reação. Quebrei o silêncio:
— Tá esperando ela?
— Hã?
— A Stephanie...
— Hm... não. Acho que ela já foi. Na verdade eu tô... só... sei lá, tentando descobrir como voltar pra casa.
— Não sabe voltar pra sua própria casa?
— Não! É que me trouxeram de carro e... eu sou novo aqui, sabe? Digo, na cidade. Me mudei há pouco tempo.
— Tô ligado. Seria bom você participar do corrida & tequila pra se familiarizar com as áreas daqui...
— Do que você tá falando?
— É uma corrida anual que o pessoal do colégio faz. A maioria dos novatos participa pra tentar ser apadrinhado pelos veteranos. Ao menos, é claro, que algum deles queira te apadrinhar por conta própria...
— Deve ser bem... legal... e cansativo.
— Na verdade é uma merda, mas como nenhum deles quer me ajudar, parece que vou ter que obrigar eles a me engolir.
— Pois é... eu... — Um carro parou do outro lado da rua. — Acho que vou nessa!
— Já sabe por onde vai?
— Sim! ...Não! Quer dizer, meu pai veio me buscar. Até amanhã! — Se despediu sem olhar para trás.
E eu? Bom... Eu fiquei ali, parado, igual a um otário até o Uno dobrar a esquina e sumir. Como se ainda tivesse algo pra falar e ele fosse me ouvir. E então uma lâmpada acendeu na minha cabeça — ele podia ser o meu atalho. Mas pelo menos naquela tarde eu deixei ele passar batido.
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O Hiperceptível
Novela JuvenilO que você faria se pudesse controlar os seus sonhos? Quando Felipe, Henrique e Stephanie se conheceram, não imaginavam que aquilo iria além de uma conversa de primeiro dia de aula. Para todo elogio não dado, para toda cicatriz e para todo coração p...