[01] Morte

345 78 267
                                    

A mulher tropeçava nos próprios pés enquanto era guiada brutalmente por seu executor.

De aspecto simples e em meio a roupas de segunda mão, a jovem chorava e gemia dentro da angústia que sentia por estar perto da morte.

O lugar estava lotado. Não fazia sol, tampouco chovia. No entanto, o céu estava coberto de nuvens escuras e pesadas, contribuindo para deixar mórbido o cenário cuidadosamente montado em plena praça central.

Um confiante cardeal estava acima do púlpito, esboçando indignação.

Suspirou. Então anunciou, em alta voz:

"Èmile Narcuse é acusada de feitiçaria e pacto com o demônio, que levou a sacrificar 3 crianças inocentes, os preferidos do Altíssimo. Para heresias graves, a pena é de morte."

Aquilo parecia comum.

Eram pouco menos do que oito horas da manhã e a sentença de morte já havia sido lida.

A jovem enxergava nada além da escuridão de um emaranhado de fios de corda, que cheiravam a bolor e sangue. A bile subiu do estômago para a garganta e ela regurgitou, vomitando nos pés do carrasco, que instantaneamente sacudiu a mulher com imensa raiva e desgosto. Tão magra como era, sentiu dor durante o puxão, mesmo sabendo que aquele problema em nada se compararia ao que estaria prestes a enfrentar nos minutos seguintes.

O saco de napa foi retirado da cabeça feminina com extrema violência, desgrenhando os fios de cabelo negro da mulher, que exibiu a todos presentes (e inclusive ao Tribunal da Santa Sé) a amargura do rosto petrificado em dor e desespero.

O coração estava em frangalhos.

Os olhos azulados antes tão intensos — e agora sem cor —, se afogavam em lágrimas tórridas e imparáveis enquanto do nariz escorria um líquido viscoso e espesso. A secreção transparente que ali se formava ganhou cor ao se misturar com o sangue talhado adquirido dos bofetões recebidos no cárcere, fazendo a mulher parecer, literalmente, uma assombração.

— Queimem a bruxa!

— Exterminem a maldita!

— Matem a imunda!

A multidão começou a gritar palavras de ódio ao mesmo tempo enquanto se aglomeraravam mais perto da estrutura de madeira, inseridos em revolta e ansiedade para verem cumprida a tão esperada pena de morte daquela ali. A herege deveria pagar pela desgraça de tantos inocentes, afinal, as crianças mortas eram seres ingênuos e sem mácula, filhos amados de Deus.

Èmile! Soltem-na!

A voz de uma senhora de meia-idade — cheia de fios brancos e beirando aos seus sessenta anos — se destacou na multidão e foi rapidamente contida por um brutamontes, que a arrastou para longe dali. Surpreendendo a todos e mesmo distante, sendo violentada, a anciã continuou bradando sua indignação em alta voz:

Deixem-na em paz! Ela é inocente!

Èmile Narcuse grunhiu, assistindo a cena da velha sendo retida, e pensou em implorar pela vida, mas o terror não a permitia pensar direito ou formar palavras coerentes. A acusada de bruxaria não emitia nada além de balbuciados torpes enquanto o corpo frágil era atado por cordas firmes à grande estaca de madeira que estava rodeada de muito feno e troncos menores, todos dispostos inclinados ao chão.

Durante todo o processo de preparação, pessoas se aproximavam dela para cuspir-lhe a face e jogar-lhe objetos na cabeça que iam desde pedras, vegetais e ovos podres à água benta.

Uma criança assistia tudo aquilo com sutil interesse, curioso pelo que viria a seguir.

Nunca tinha presenciado algo parecido antes e parecia não saber que a jovem mulher seria queimada na frente de toda aquela gente enfurecida. Com fuligem nas bochechas gorduchas e sardentas, roía as unhas sujas enquanto coçava alguma parte do cabelo enferrujado, que era cheio de cachos e chumaços inflexíveis — como se não fossem lavados há uns bons dias.

Uma tocha foi acesa e exposta frente ao rosto de Èmile por um carrasco que sorria de forma macabra, fazendo-a virar o rosto e berrar em agonia. O fogo presente na ponta da madeira tocou o feno aos pés de Èmile, engolindo o resto das gramíneas, troncos finos e não demorando muito para começarem a queimar os pés da jovem — que se movia em agonia e berrava a plenos pulmões.

Algumas pessoas batiam palmas para aquela atrocidade. Parecia o certo a se fazer.

Em pouco menos de uma hora, Èmile havia se tornado uma imensa tocha humana. Os berros se tornaram uma melodia aterrorizante junto ao crepitar intenso do fogaréu e o garoto de bochechas rosadas ficou descorado ao presenciar aquilo. Os olhos infantis outrora ansiosos se arregalaram em espanto e lágrimas tímidas ansiaram nascer das orbes. Como se não bastasse o choro, uma tremedeira começou a inquietar o pequeno corpo gorducho, que parecia estar grudado ao chão pelas plantas dos pés.

— Vonyo! — Uma voz tilintante e infantil despertou o menino, que deu um pulo, como se acordasse de um transe — O que está fazendo aqui? Vem, vamos embora!

A garota sustentava a mesma idade daquele a quem chamava e carregava na cabeça fios cor de areia molhada e madeira. Caídos até metade do pescoço, estavam presos dos dois lados com fitas de cetim negras, que pareciam gastas pelo tempo. Todos a chamavam de desnutrida por ser franzina e sempre trajar o mesmo vestido vermelho que já não lhe servia mais e estava mais curto, rasgado nas pontas.

O tecido fino pouco tremulava ao vento em meio à corrida da criança, que trazia o outro pela mão.

— Caterine, ela foi queimada viva... — Vonyo sussurrava inocentemente ainda imerso em horror, andando sem enxergar um palmo a frente do rosto.

— Mamãe fez ensopado de miúdos para nós! — Desconversou a garota, que fingiu não dar atenção ao que ouvia do menor.

— Não aguento mais comer miúdos...

— Não deixe ela ouvir isso.

INVERSÃO (✔)Onde histórias criam vida. Descubra agora