[04] Redenção

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As duas crianças andaram alguns minutos pela floresta de árvores secas e sem folhas. A terra tinha uma cor escura e era extremamente fofa em cada pisada, como se os menores andassem em nuvens.

Eram três horas da madrugada. O clima estava frio.

Mais à frente um riacho se revelava, aparentemente gelado. Entretanto, em muito se diferia da temperatura ambiente já que estava... quente.

— Chegamos! — Caterine anunciou em risadas finas e alegres — É chocolate quente, olha!

Caterine sorriu, já muito próxima da beira.

— Doces ou travessuras?

A infante uniu as mãos em concha e bebeu do líquido espesso com volúpia, puxando Vonyo para que bebesse também.

O chocolate era extremamente doce e agradável ao paladar.

— Você pode trazer os seus amigos da fonte desativada para beberem aqui todos os dias, o que acha?

* * *

3 dias depois da sentença

Já fazia um tempo.

Durante os três dias seguidos o pequeno Vonyo não conseguiu dormir direito, fosse por causa dos pesadelos recorrentes que teve com Èmile e a morte na fogueira ou a inquietação que sentia por algum motivo desconhecido.

Três dias tortuosos.

Não para Caterine, que parecia incomumente feliz com a destruição da bruxa.

Algo parecia injusto.

"Reze para vencer o mal, Vonyo... Reze e não pare de rezar... " Era o que Èmile Narcuse repetia nos pesadelos, sempre com a pele extremamente chamuscada e cheia de buracos.

Entretanto, naquele dia, tudo estava mais forte.

A voz, a angústia, o medo.

O garoto não conseguiu ficar na cama.

Vonyo saiu do quarto com certo desespero. Andou a passos lentos até a sala avistando uma mulher, de costas. Parecia estar costurando alguma coisa. O cabelo, dessa vez, lembrava algodão molhado, sujo de terra.

Tremeu, sentindo medo daquilo.

— M-m-mamãe? — A voz trêmula soava insegurança quando viu a mulher que, antes de costas, começou a virar o rosto e o corpo lentamente, revelando a face de sua mãe — C-cadê a Caterine?

Algo estava errado.

Havia uma criança, de gênero masculino, sem braços e com uma perna atada ao ombro esquerdo, sendo costurada por aquela criatura. Via-se sangue talhado, terra e uma grossa linha negra espalhada pelo chão, está que subia e passava pela calibrosa agulha — já enterrada na derme infantil.

Vonyo petrificou em horror. Um berro se fez ouvir e o garoto não percebeu que viera dele próprio.

A aparência daquele ser foi mudando de lisa e sem mácula para uma extremamente envelhecida em tons esverdeados e acinzentados. Era marcada, não somente mas também, por rugas acentuadas e protuberantes que se destacavam nos olhos — estes não sendo mais azuis e sim muito negros. O vestido vermelho de trapos se alongava ao chão e não contribuía para deixar o visual agradável.

Tudo era aterrorizante naquele novo ser... humano?

Uma barata saiu da boca daquela senhora, andando e se escondendo dentro do velho ouvido.

— Seu pirralho estúpido! — a voz de Caterine se uniu à da mulher a quem chamava de mãe fazendo um eco sonoro, macabro e que confundiu o garoto — Eu poupei você!

Vonyo começou a rezar o Pai-Nosso dentro da cabeça, repetindo a oração nervosamente, diversas vezes. Andou para o lado de maneira contida e cuidadosa, avistando a lareira.

Lembrou de Émile sendo queimada viva.

Fogo. Fogo contra a bruxa.

Vonyo chorava, mas não deixava de repetir a única oração que sabia dentro da mente. Estava mais perto da lareira. Há poucos centímetros.

Deixou que a bruxa se aproximasse, cega de ódio.

A criatura avançou com os dentes agudos e expostos em direção a Vonyo, que tentou passar debaixo do vestido dela e ficou preso no emaranhado de pano velho. A bruxa se desequilibrou durante o ataque e mergulhou no fogo, puxando o menino pelo tornozelo enquanto o atirava dentro da lareira também.

Os dois berravam em alta dor enquanto as carnes ardiam e a casa, feita de feno, madeira e pano velho, em pouco tempo foi engolida pelas chamas.

Vonyo sabia que morreria, mas não parou de repetir a oração ensinada por Èmile. Nenhuma vez. Mesmo quando sentia uma dor absurda e inquietante, sendo consumido pelo fogo.

Os corpos envoltos em labaredas se debatiam pelos cômodos da casa, agoniados, agonizantes, angustiados. Um grande odor de carne queimada começou a poluir o ambiente, que era tomado por uma fumaça negra e densa.

Há alguns metros, caçadores que trabalhavam nas florestas aos arredores foram alertados pelo grande rastro de fumaça que subia, chamando um grupo maior de homens para irem até o local, ver o que se passava.

O casebre tinha sido devorado pelo fogaréu e caía aos pedaços com velocidade, impossibilitando que o grupo entrasse ali. Três homens correram para os fundos da casa e acharam dois corpos de crianças recém assassinados, ainda quentes.

A bruxa não já havia sido queimada? Como seria possível?

Outros dois seguiram caminho pela esquerda procurando água para apagar o incêndio e encontraram um riacho.

De sangue.

Restos de animais, plantas e crianças se misturavam no líquido espesso, boiando em uma sintonia macabra.

Tudo estava o inverso do que deveria ser.

Uma explosão jogou um corpo miúdo para fora do casebre que em deploráveis condições, ainda se debatia e agonizava.

Um grande pano de napa foi jogado em cima dele para apagar o resto do fogo que o consumia. Homens se aproximaram para prestar socorro ao garoto, que fugindo do normal de qualquer ferido gravemente, sorria, satisfeito.

— O Pai... Nosso me ajudou... a... - tossiu violentamente por alguns segundos — matar a... bruxa...

Aquelas foram suas palavras finais.

Vonyo deu seu último suspiro e entregou sua alma ao Pai Nosso que tanto rezava. Iria encontrar Èmile, de quem tinha saudades.

Alguns rapazes do grupo levaram as mãos à cabeça e lamentavam, chorando.

Uma menininha de vestido vermelho observava ao longe, atrás de uma árvore seca.

E sorria.

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