Devia ser lá pelas nove horas da noite daquele dia num bairro qualquer. Uma senhora acompanha, na tv, os noticiários daquele horário, quando ouviu o soar da campainha. Achou estranho, pois não era normal alguém bater à sua porta numa ora, digamos, imprópria. Já havia um bom tempo que ninguém a perturbava em tais momentos. Ela, antes de se levantar, rosnou um "não acredito, bolas..." e largou a xícara de café, já seca, sobre uma mesinha ao lado. Ajeitou as sandálias nos dedos, impulsionou o corpo num movimento elástico, e foi em direção à porta. Ela vivia sozinha já há alguns anos e, desde então, nada de extraordinário lhe havia acontecido. Nossa Senhora Aparecida e os terços rezados todos os dias lhes protegiam de todas e quaisquer sandice humana, providência divina, tá ligado? A alguns metros da porta, que era forrada com um vidro opaco, ela já percebeu, na parte de fora, uma figura que devia ser humana, pois era constituída de cabeça, tronco e membros. Lobisomens, também, possuem esses traços...
Ela, ainda no percurso, olhou para trás para pescar uma fala do jornalista que estava na tela da teve e não gostou nada, nada: "porra, logo agora que tão falando da previdência, vou ter que ligar para a vizinha para saber das mudanças. Que merda...".
Rodou a chave e abriu a porta enxergando, à sua frente, um jovem lavado de suor, o rosto tétrico e o peito ofegante. Sua tez era de uma palidez visível e sua língua parecia travada, ele era meio que um zumbi sumido de sua reserva, separado de seu bando e ávido por alguma coisa. Uma figura nunca vista por aquela senhora estática à sua frente, isenta de qualquer ação, de atitude e boquiaberta. O jovem imprimiu um esforço, e balbuciou: ___Do... Do... Dona me dá cinco paus aí...
A senhora permanecia em seu torpor inicial.
___É que___falou de novo o jovem___tem uns caras atrás de mim para me matar, preciso fugir...
___Com cinco reais?___Inquiriu a mulher.
___É, eu pego um moto táxi e vazo... Anda logo, dona...
Ele olhava insistentemente para trás e a mulher viu que, realmente, o cara estava apavorado. Ela não pensou duas vezes, correu até o armário na sala, puxou uma gavetinha e apanhou uma nota de cinco reais. Entregou-o ao rapaz que tinha os olhos estatelados e ficou a olhá-lo correr em desabalada e, em poucos minutos, passaram dois caras em uma bicicleta. Eles olhavam para todos os lados, como que mapeando a área, isto fez com que a senhora tivesse a plena certeza de que eles, os dois, seriam os algozes daquele rapaz transfigurado num medo explícito. Girou a chave rodando o cilindro por duas vezes e voltou à sua poltrona...
Mas parecia que o noticiário perdera o sabor, algo de amargo permeava a sua língua e uma sensação de medo a envolvia feito uma ciranda, um volúpio de ponta cabeça...
Este rapaz que tinha as vestes entumecidas de suor e corria como um louco desvairado era Fernandinho. Novo, vinte e cinco anos largara os estudos bandeando para o mundo das drogas. Até que encarou alguns trabalhos esporádicos, mas esse glamour pernóstico e inefável o laçou ao que parece, para sempre. Ficava algum tempo limpo, em tratamento, mas, em seguida, voltava ao vício numa gana irrefreável. E agora ele estava enrolado porque dois caras queriam matá-lo e ele, sem dúvida alguma, não desejava morrer tão cedo. Deu sinal para um moto táxi que passava, escanchou as pernas na garupa e gritou para o piloto: ___Para o Alterosas, para o Alterosas...
O motociclista sentiu um odor de suor vindo de um corpo em plena ebulição, acelerou e saiu catando as marchas de sua Titan 125.
Ultimamente a vida de Fernandinho ia de mal a pior, a mulher, com quem ele tinha um filho de nove anos, o expulsara do barraco e ele voltara a morar com os pais. Vivia as turras com o pai, que não aceitava aquela vida de vagabundo-bandido. As brigas entre os dois se acentuavam cada vez mais e algo desagradável poderia surgir. A mãe dele é que segurava a barra o quanto podia, no seu ócio contemplativo, já devia a algumas bocas. E foi exatamente este declínio, a receita menor que a despesa, que o fez migrar de cocaína para crack. Os bons tempos de carreiras e mais carreiras nas baladas já eram passados e o cenário era, cada vez mais, negro como nunca. Mesmo para manter-se no crack ele tinha que ralar em alguns bicos semanais ou contar com a generosidade dos "parças". Acontece que o bicho estava pegando para todo mundo, até mesmo para os próprios traficantes, os donos da festa, tá ligado? Vendia-se menos e a inadimplência crescia como nunca, era uma bola de neve que rolava abaixo, chupando todos ao seu redor. Então, para fumar uma pedra sequer, o cara tinha que virar ninja prá dedéu, brother...
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