I - O Uivo

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" O mesmo martelo que estilhaça o vidro forja o aço. " – Ditado derivado do poema Poltava de A.S. Pushkin.



A noite tinha um perfume úmido de terra molhada, mas não era o cheiro da chuva. Era um odor ferroso, algo que fez os pelos da nuca de Gabriel ouriçarem e seu corpo todo responder ao sinal de perigo, fazendo o garotinho correr através da floresta ao máximo que suas pernas podiam aguentar. Ofegante, tentava superar as dores musculares espalhadas pelo corpo. Gabriel não aguantava mais correr, porém ao mesmo tempo em que as ondas de exaustão vinham, algo as repelia. Precisava continuar, precisava sobreviver. Desviou das árvores, pilares escuros na parca luz do luar. Saltou raízes que se espalhavam pelo chão da floresta raiado de raios prateados. Fachos da lua crescente que, a muito custo, venciam as copas das árvores.

O peito ardia, queimava com o ar frio sendo tragado a golfadas desesperadas até que os músculos cederam e Gabriel não pôde mais se mover. Ele caiu de joelhos e prostrado de quatro no chão, o garotinho sentia que ia ser trucidado se não se movesse. O corpo tremia, a musculatura, começando pela nuca, tencionava-se involuntariamente indo quase no limite das câimbras enquanto o corpo parecia ferver. Suor desceu em bicas.

Não podia parar, e embora soubesse disso, mover-se era impossível. Tentou gritar para que seu corpo se erguesse, inútil. A garganta contraiu, quis vomitar, fogo queimava em seu abdômen, a garganta contraiu novamente e nada passou por ela. Lágrimas rolaram pelo rosto sem que ele percebesse.

Um urro cortou a noite através da floresta e Gabriel sentiu que morreria se desistisse. Não, definitivamente ele tinha que correr. Os dedos das mãos se cravaram no úmido solo coberto de folhas apodrecidas. Sentiu a terra escura, forçou os pés e meio de quatro, meio querendo se levantar, correu impulsionado pela vontade de viver. Os pelos de sua nuca arrepiaram, mas ele não ousou olhar para trás.

Usando toda a potência dos músculos impulsionou-se cada vez mais veloz, as pernas se movendo sem que ele sentisse, a dor já havia amortecido o corpo todo. Gabriel corria como nunca correra na vida. As árvores eram vultos, o chão da floresta um borrão enquanto o urro assassino o perseguia, um rosnar continuo e perigoso.

O ar queimava a cada tomada de fôlego; os passos começaram a ficar incertos, desengonçados, vacilantes. Seguia sempre em frente, mas a exaustão vencia seu espírito. Súbito uma sombra o fez desviar e rolar pelo chão. Uma enorme parede de músculos e pelos escuros o encarava. A monstruosidade rosnou mostrando assombrosos dentes amarelados que brilhavam com a saliva, os olhos vermelhos ardiam de forma maligna. Com as possantes garras afiadas a fera intentou ir para cima do garotinho.

Entretanto, uma sombra igualmente grande e muito veloz, veloz como o vento, se interpôs entre os dois dando início a um embate de proporções épicas.

Apavorado Gabriel ficou ali, sem conseguir mover um músculo. As duas poderosas feras arrancavam sangue uma da outra com mordidas selvagens e golpes vigorosos de suas garras. A peleja foi se afastando do garoto à medida que uma das feras empurrava a outra para uma parte mais densa do pinheiral. Sangue lavou o solo, o cheiro úmido e ferroso subindo às narinas do garoto fazendo os pelos do corpo arrepiarem. O perigo era real demais.

Uma nova sombra cruzou a mata, a luta ficou mais violenta com a chegada de uma terceira besta. Um pinheiro tombou sob a fúria dos três colossos.

Adrenalina incendiou o corpo de Gabriel, como se alguém o ordenasse a sair dali. Estava lavado em sangue, não entendia mais as formas que via, tudo ficou confuso. O fogo em seu abdômen retornou e ele rolou de volta para se apoiar. Em desespero para engatinhar e correr, finalmente se pôs de pé e correu. Trovões soaram ao longe.

[DEGUSTAÇÃO ] Cães do Asfalto - Livro 01 da Série Lobos da NoiteOnde histórias criam vida. Descubra agora