I - VULKERMÓNT

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Se um homem é mesmo aquilo que o rodeia e sua personalidade mais acentuada — a qual o sol fixou não no corpo, mas na alma — reflete-se na qualidade daquilo que se apresenta ao seu redor, e se as paredes, ruas e prédios se entortam de acordo com o sofrimento no caminhar de seus pés, então o capitão Vinst da Domera, homem nativo da ilha de Vvysena, pertencia aos seres mais perturbados e penosos que ousaram navegar pelos reinos de Era, pois o que o cercava era uma taverna decrépita; as pranchas de madeira que brotavam do assoalho, úmidas e escuras, presas ao teto por uma viga robusta, mal afastavam o frio da nevasca lá fora. Além do mais, rangiam e ameaçavam cair sobre os homens que terminavam a segunda refeição, envoltos em peles pesadas e pouco dados à conversa. A luz era parca ali e, em certa extensão, também úmida, mesmo que excessivamente amarelada, o que fazia as matizes de marrom — do mais escuro ao menos escuro, pois não existia nada claro ali — ganhar um aspecto sórdido, como casco de navio, encrustado por sal e cracas. A lareira, por sua vez, enfeitava mais do que esquentava. Era como se o estalajadeiro, desprovido de outros quadros de mulheres nuas, navios rumando contra ondas terríveis ou de ilhas fantásticas envoltas por mistérios, houvesse mandado erigir ali um console firme, sobreposto por uma dúzia de objetos antiquados e encardidos, e uma chaminé quase inexistente, a fim de preencher o espaço do assoalho ao teto baixo, bem definido entre janelas cerradas e devidamente acortinadas.

E este último detalhe é, talvez, o ponto em que a verdade antiga mais tinham razão: também em Vinst ardia um fogo que não esquentava!, e isso, além de amplamente consciente, tinha data de início. A data de término — aquele momento mágico no qual as chamas internas finalmente voltassem a esquentar-lhe a vida, como as chamadas máquinas de reinos distantes, cujos movimentos faziam escapar vapor e chiados —, esta era desconhecida. 

Sentado como estava num canto do salão de refeições, a mesa lotada de garrafas vazias e restos frios, um homem desavisado nem de longe teria reparado na figura do capitão, que — e novamente —, tal como o lugar, mostrava-se em cores desbotadas e amarronzadas. Um certo homem carrancudo e, diziam as más línguas, um tanto amargado pelos anos nos mares salgados. Talvez devesse a isso o semblante fechado, as sobrancelhas prestes a se tocar numa careta enfezada, desmentida pelo olhar vazio, quase inocente que lançava a qualquer lugar, mirando ao nada, e a cabeça pendendo um pouco à direita. Esquecia-se com frequência de aparar a barba grisalha e os cabelos ondulantes. Estes últimos, numa forma qualquer de desleixo masculino, achava mais fácil esconder sob seu inseparável chapéu negro, que, de tão largo, curvava-se nas bordas. 

E foi bem o que aconteceu quando os fidalgos adentraram a estalagem: não perceberam de todo o capitão, mas não importava: fato era que Vinst encontrava-se no lugar e tempo certos para que sua vida tomasse o rumo que tomou.

— Não se preocupe, capitão — ouviu a moça dizer, enquanto punha, entre a taça e a garrafa de vinho, um novo prato fumegante. O aroma do guisado, mais do que a voz da moça, pareceu fazer o homem despertar: percebeu-se de súbito faminto. — As nevascas cá no sul uivam mais do que lobos, sim, mas diferente deles, param por aí — continuou, enquanto uma ventania fugidia escapava o domínio das janelas e cortinas para tocar o rosto do homem.

Vinst aceitou o guisado com um leve toque na aba do chapéu e um sorriso que delineou-se entre os fios da barba, e pôs-se a reparar a moça. Não como o fazem os homens salientes, que olham de baixo para o meio e se perdem ali: olhou-a nos olhos, observou as madeixas louras e o pescoço delgado, e voltou aos olhos por um tempo, como se ansiasse por ser visto.

— Um rangido saudável, é o que digo — falou por fim, quando o rubor já subia às bochechas da menina.

— Como?

— Não me preocupo: conheço bem os tipos de rangidos, dos mais adequados aos fatais.

— Pois bem! É um capitão, não é mesmo? — riu a moça. — O que me diz dos mares do sul?

VIRMÍRIA I {REVISÃO}Onde histórias criam vida. Descubra agora