I. Grito Final
O tempo passou. A minha irmã Felicia tinha morrido há quatro meses. Desde então, tudo tinha mudado.Em casa, os meus pais discutiam sem razão quase todos os dias, enquanto eu ficava sentada no meio deles a fingir que não estava ali. Era mais fácil que assim fosse. Se não me envolvesse, não sobraria para mim e as discussões não se estenderiam por tempo indeterminado. E uma coisa posso garantir, eu estava farta de conflito.
Na escola, eu, Kate, tinha-me tornado apenas na irmã da rapariga que tinha sido comida por ratos. Desde esse evento trágico, todos os olhares eram de pena e desconsolo. Era como se, para toda a gente, eu não fosse capaz de existir só por mim mesma.
“Mais um dia”, pensei. Enquanto atravessava a passadeira para o portão da escola. Era cansativo existir debaixo da sombra de uma tragédia.
Hoje, estranhamente, os olhares, que se tinham tornado habituais, cortavam-me a alma mais do que em dias anteriores. Sentia-me a sofucar.
Tentei fixar o olhar no chão. O psicólogo, que a escola me tinha atribuído, aconselhou-me a olhar para o chão sempre que a ansiedade me atacasse como agora. Eu fî-lo, mas não estava a resultar. Voltei a erguer o olhar.
Vi os meus melhores amigos, Anne e Bruce, à minha espera junto ao portão da escola.
– Kate! –, acenaram-me sorridentes.
Foi aquele sorriso que me fez correr para trás. Não conseguia! NÃO CONSEGUIA IR À ESCOLA.
Estava farta daquele sorriso que me fazia sentir como uma boneca de porcelana a quem todos tentavam agradar. Teriam medo que me partisse se fossem genuínos? Que desatasse a chorar? Não, eu não iria chorar. Já o tinha feito. Tudo o que desejava agora era ser eu mesma, só eu… a mesma de sempre! Kate… Porque não me deixavam ser eu, a mesma de sempre?
Ou, talvez, eles estivessem à espera que eu descobrisse que me tinha tornado numa nova Kate: “Kate, a irmã da rapariga que foi comida por ratos…”
- Não! -, eu recusava-me a ser aquela Kate! - Sou a mesma!
Quando dei por mim, as minhas pernas já me tinham levado para dentro da floresta densa do outro lado da rua. A qual era possível avistar da escola.
“Finalmente, estou longe dos olhares”, pensei aliviada. Caí sobre os meus joelhos e desatei a chorar.
– Kate! Kate! – surgiram as vozes dos meus melhores amigos.
Rapidamente limpei as lágrimas e ergui o rosto. Não os podia deixar ver-me neste estado. Mas, no momento em que ergui o rosto, vi uma sombra a mover-se agilmente entre um par de árvores logo ali em frente. Despareceu quase que imediatamente.
“O que foi aquilo?”, perguntei-me. Arregalei os olhos e esperei por um novo som ou movimento. Foi aí que me ocorreu… A sombra não tinha feito barulho, embora tivesse passado por um trilho com galhos.
Levantei-me e ajeitei a mochila. Fiquei alerta.
– Kate! – repetiram o chamamento, deixando-me sobressaltada.
No mesmo instante, a sombra ressurgiu. Saiu de trás de umas árvores e moveu-se em direção ao horizonte.
Tive que a seguir!
Depois de meses, o meu coração acelerou-se por uma coisa que não era tristeza ou revolta. Sentia-me curiosa, aventureira e corajosa! Nem sequer tinha conseguido perceber ao que é que aquela sombra pertencia. Mas não me importava de todo, só a queria seguir porque era diferente! Além disso, o que quer que fosse, era parecido com uma bola de pernas curtas e mais rápido do que eu. Não devia ser perigoso.
Entretanto, os chamados tornaram-se cada vez mais distantes.
– Kate! – ouvi uma última vez antes de ter tropeçado.
Senti as minhas mãos arrastarem-se pelas pequenas pedras e galhos que cobriam todo o chão daquela floresta. Depois a minha cara, que bateu com força no chão. Senti o peso do meu corpo descair sobre a minha face, deixando o meu pescoço dorido pela quase cambalhota.
Gemi de dor.
Os meus braços… não os sentia. Queria levantar-me, mas sentia-me mais pesada do que poderia alguma vez ter sido. Era como se de repente, me tivesse tornado num grande pedaço de chumbo.
No meio do meu desespero, as lágrimas voltaram. Os meus olhos molharam-se e, meio que entreabertos, porém desfocados por uma corrente de água, viram uma coisa.
Uma coisa que eu nunca mais esqueceria!
Negra como a noite! Tinha um semblante humano, mas não o era! Debruçada sobre os seus próprios pés, como que a brincar com uma bola, a mesma que me fez correr até ali.
Arrepiei-me. Não podia ser real! Desejei que não me visse, mas...
A sua cabeça, onde cabelo não existia, moveu-se para o lado. Olhou na direção do rio ali perto. E, no meio desse olhar, um som agudo, quase que impossível de ouvir repercutiu na minha cabeça como um pensamento que não era meu.
– Está a chegar!
– O que está a chegar? – exigi saber.
Aquela coisa deformada, voltou a mexer a cabeça. Mexeu o suficiente para que eu lhe visse o brilho intenso de um olhar malicioso. Foi aí que percebi o que ele fez questão de confirmar: – Morte…
Eu ainda estava imóvel no chão, incapaz de me levantar, quando, de repente, ouvi um grito vindo do rio. O meu olhar confuso e desesperado seguiu esse mesmo grito. Tudo o que vi foi uma ave a esvoaçar.
Aflita, voltei a olhar para a coisa negra, posicionada como um feto.
Já não estava ali! DESAPARECEU!
Recomecei a chorar, mais alto e incessante.
“Para onde foi?”, pensei angustiada. Tive medo que voltasse a surgir. Tive medo da sua pele negra como a noite e viscosa como de uma lesma! Medo que me tocasse! Medo que me manchasse com a mesma podridão que emanava.
Um novo grito cortou o silêncio da floresta, fazendo-me gritar de pânico. Tentei controlar a minha respiração e mover-me. Mas não conseguia! A minha imaginação estava agora inquieta. O que estaria a acontecer? Quem estaria a gritar?
O meu corpo, completamente inutil, só me permitia cheirar aquela podridão dispersa pelo ar e sentir a presença da coisa negra! Ele estava por perto!
O meu coração disparou de terror.
– Ajuda! – gritei. De novo e de novo. Até que, de repente, as lágrimas cessaram e vi. Vi o que aconteceu no rio como se fosse uma memória minha. Mas não o era.
A coisa negra tinha me avisado! A morte tinha lá chegado, enquanto eu estava imóvel. Incapaz de intervir.
– AHH – soou um novo grito, que me desnorteou e me fez desmaiar. Aquele tinha sido o grito final. Senti-o como uma verdade absoluta.
Eles morreram e a coisa negra desapareceu!
VOCÊ ESTÁ LENDO
Força Desconhecida
Mystery / ThrillerKate costumava viver numa vila onde nada de novo acontecia. Mas um dia, sem aviso prévio, tudo mudou. Ao longo da trama, ela ver-se-á a sufocar por culpa de terríveis eventos, enquanto luta para os compreender e, ao mesmo tempo, para fugir deles.