Primeiro Evento Parte I

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O Primeiro Evento

I. Morte

   Moro nesta pequena vila desde que me entendo por uma indivídua. Pode não parecer, mas entendermo-nos como um individuo é um passo muito importante. É nesse momento que percebemos que existimos. E, estimado diário, existir é sinónimo de sofrer. Sim, isto não é uma história de embalar. Se é isso que esperas, bem… melhor será não existires.
  
   Como estava a dizer, moro em Cross Town desde sempre. Chorei, babei, gatinhei, andei e corri sempre aqui! Nem nas férias me livrava desde lugar enfadonho. Na melhor das hipóteses, passaria as minhas tardes de verão no cinema improvisado na cave de minha casa ou no rio com os meus melhores amigos, Anne e Bruce. Os melhores dos melhores!

   Bem, hoje é o meu aniversário. E, como sempre – e sempre é uma palavra que me chateia mais do que é possível imaginar – vou tomar o pequeno almoço com a minha irmã mais velha, almoçar com os meus pais e, durante a tarde, vou ao café da rua com os meus melhores amigos. Eles disseram que tinham uma prenda para mim! Não sei se consigo descrever o quão curiosa estou! Tanto que não consigo adormecer.

   São duas da manhã. Oiço o tic tac do ponteiro do relógio de parede no corredor. Enquanto a minha irmã, deitada na cama ao lado, abriu os olhos de repente.

   "Que susto!", pensei. Fechei os olhos no mesmo instante e levei a mão à boca para conter o grito que quase saiu.

   – Eu sei que estás acordada – disse a minha irmã.

  Não lhe respondi e fingi estar a dormir. Não com muito sucesso, pois os meus olhos entreabertos denunciavam-me.

   – Não tens que fingir – disse ela entre um sorriso discreto. Depois, ouvi-a mexer-se na cama para ajeitar a almofada. Puxou também o cobertor para trás, deixando apenas o lençol a cobrir-lhe as pernas. – Está calor – continuou e deitou-se de barriga para cima.

   Por momentos, deixei de ouvir o ponteiro do relógio por causa dela. Mas, entretanto, voltou. Abracei a almofada de modo a que abafasse o som e tentei adormecer.

   Minutos passaram até que a minha irmã voltasse a fazer um novo barulho. Este foi diferente. Abriu a boca repentinamente e engoliu ar. Os meus olhos, que já não estavam fechados, cruzaram-se com os dela.

   – Viste aquilo? – perguntou-me num tom assustadiço.

   – O quê? – Não podia continuar a ignorá-la.

   – Nada. É de noite, devo estar a ver coisas.

   – Que coisas? – perguntei intrigada.
O relógio fez agora um tic tac mais intenso e ouviu-se o pendente telintar.

   – Nasceste! – gozou ela.
  
   – Como?

   – Kate, parabéns!

   – Ah! – lembrei-me que a mãe me tinha contado que nasci às duas e meia. Não deve ser uma hora agradável para nascer. Nem sei como correu bem, afinal, que tipo de parteira gosta de ser acordada a meio da noite para encher as mãos com sangue? Sim, ainda sou deste tempo! Onde parteiras fazem o parto. Estas senhoras não precisaram de escola para aprender. A vida ensinou-lhes a ajudar outras senhoras a dar à luz aos seus bebés. Uma tarefa nobre, mas, até as tarefas mais nobres são enfadonhas se forem repetitivas. Que ninguém venha com tretas de que gosta de curar feridas todos os dias! Ninguém é assim tão bom!

   – Como te sentes? – perguntou ela, num tom um tanto irónico.

   – Com sono.

   – Não te sentes mais velha?

   – Todos os dias. – Principalmente quando a ouvia. A minha irmã, Felicia, é aquele tipo de pessoa que gosta de apontar todos os defeitos e ver o que de pior há numa situação. Talvez esteja a exagerar, ou talvez não.

   Ela sorriu e desistiu da conversa. Tal como sempre, uma resposta à medida dela é a solução para a manter calada.
Voltei a tentar adormecer. Desta vez, resultou! Estava a dormir tão bem, quando ouvi a voz dela alterada.

   – Está aqui qualquer coisa! – disse numa mistura de aflição e confusão.
Abri os olhos. Ela estava a levantar o lençol a medo, quando uma coisa com o aspeto semelhante a uma bola cinzenta se mexeu e voltou para debaixo do lençol.

   Ela sentou-se na cama e disse alto: – Estava a morder-me!

   Assustada, sentei-me também na cama. Seria uma partida? Estaria ela a tentar fazer-me de parva? Era possível, mas, mesmo assim, o inteligente a fazer-se era dar-lhe o benefício da dúvida e por isso alinhei naquilo que seria a partida.

   – O quê? – perguntei séria, com os olhos bem abertos.

   – Estava a comer-me! – gritou e ergueu as mãos.

   – O que tens nas mãos?

   – Sangue! Estava a comer-me – disse, quase em lágrimas. E, bruscamente, atirou o lençol para os pés da cama e colocou-se em pé na cama.

   – São ratos! São ratos! – gritava agora desmedidamente, entre pulos de aflição e nojo, enquanto tentava pisar um círculo daquilo que pareciam muitas bolas cinzentas no meio da cama, exatamente onde ela tinha estado deitada. – Estavam debaixo de mim!
Levantei-me. Hesitante, aproximei-me da cama dela para ver melhor. Aquilo não era uma partida! Apesar da pouca luz da lua que entrava pela frincha da janela de madeira, vi-os com clareza: – São mesmo ratos…

   – Ajuda-me! Chama o pai – implorou em lágrimas.

   Só consegui erguer o rosto para fitar o dela. O resto do meu corpo ficou imóvel. Não me consegui mexer perante aquela imagem de agonia. Os ratos estavam a morder-lhe os pés, a subir-lhe pelas pernas e multiplicavam-se por cada pulo que ela dava para os pisar e matar. Era como se ela os estivesse a dividir em vez de matar mesmo… A dividir, multiplicando-os.

   Foi momentos depois que senti a mão calejada do meu pai no meu ombro. Ele vinha para a socorrer, mas já era tarde. Soube-o quando vi o brilho do olhar da minha irmã desaparecer, afundando-se numa montanha cinzenta.

   – Ratos comeram a minha irmã.

Força DesconhecidaOnde histórias criam vida. Descubra agora