17 de julho de 2016
Um pássaro bate as asas mais rápido do que um ser humano é capaz de piscar; a vida de um efemeróptero adulto dura menos que o tempo necessário para uma pessoa dormir, acordar e se livrar de suas obrigações.
Vidas, bater de asas, pensamentos: passam mais rápido do que somos capazes de acompanhar de uma forma qualquer. E tudo isso depende da sincronia correta. Da aleatoriedade e da sorte. Com a sincronia correta – ou incorreta – podemos perder todas as vezes em que um pássaro bate as asas, perder a vida inteira de um inseto. Às vezes, podemos perder todos os momentos da vida de alguém: um desconhecido qualquer, um desconhecido que passou por nós na rua e gostaríamos de conhecer, de uma pessoa querida que vai mais cedo do que somos capazes de acompanhar. E de tantos "às vezes", de tantos "se", de tantas possibilidades, nós sempre perdemos alguma coisa. É impossível andar com o bolso furado e não perder nada. E na vida nossos bolsos estão sempre furados.
Algumas vezes as pessoas se perdem por inteiro. Eu me perco por inteiro. Você se perde por inteiro. Todos nós nos perdemos por inteiro em algum momento da vida e voltamos o caminho inteiro até achar tudo que perdemos, ou continuamos em frente e esperamos que alguém lá tenha encontrado o que perdemos ou até mesmo que o mundo dê voltas o suficiente para recuperarmos o que perdemos. Às vezes, nós não voltamos sem expectativas de encontrar nada na frente. Não vale a pena voltar quando não se sabe o que perdeu, quando nunca se esteve completo. Aí você se reconstrói e quem você fora já se perdeu (e sabe de uma? Tanto faz!) e hoje outra pessoa tomou aquele lugar.
A gente perde muito. Perde tudo. A vida é isso, uma grande aposta. Mas quem faz as regras nunca aposta, e nas regras da vida sempre tem alguma coisa que nós nunca perdemos. A vida é justa se você olhar pelo ângulo certo. Ora, nós nunca perdemos as dores! As dores físicas, a dor da raiva, a dor da solidão, a dor do abandono, as dores que mais evitamos. Nós nunca perdemos as dores mais simples: as dores dos ciúmes – e os céus sabem que essas eu conheço bem, da tristeza, da confusão, da irritação. Um momento ou outro, algo sempre vai doer. Mas pelo menos nós nunca perdemos as dores. A vida é justa.
Justa! As dores nos fazem humanos. Sem as dores, nós nunca nos importaríamos em perder as vezes em que um pássaro bate as asas, as vezes que pensamos em alguém, as vezes que um efemeróptero adulto morre, não que nos importemos; nós não nos importamos. Sem as dores nunca saberíamos quando a aposta acabou e quando é tarde demais para perceber nossos erros. Sem as dores nunca perceberíamos nossos erros, nem mesmo quando fosse tarde demais – e não saberíamos quando seria tarde demais, mesmo.
Mas um dia precisamos parar de apostar. Um dia acaba tudo que temos de valor. Um dia não temos mais nada e sem nada estamos sem aposta. Um dia tudo acaba. Tudo. Tudo mesmo. Tudo tem seu fim. Os amores, as dores, as felicidades, os bens, os jogos, as crises, as lágrimas, o dinheiro, as amizades. Tudo acaba um dia. E por favor, que tudo acabe na morte, obrigado.
E assim, a vida de um efemeróptero adulto para de ser tão inútil e despercebida por nós. Porque o efemeróptero perde tudo. E nós também. E isso nos faz iguais, exceto porque ele perde tudo muito mais rápido que nós. E por favor, que perca tudo na morte, obrigado.
E assim, tudo passa a ter muito mais importância: as brigas, os beijos, os abraços, as despedidas, as apresentações. Até as pessoas que odiamos passam a ter mais importância, porque mais cedo ou mais tarde até ela nós perderemos. E sem um algoz, como nos situaríamos? Mas um dia os perdemos. Um dia, tudo acaba. E por favor, que tudo acabe na morte, obrigado.
Por favor, que tudo acabe na morte, obrigado! Repito quantas vezes for necessário até que me faça entendido, desculpe. Eu sinceramente não quero que nada acabe antes da morte. Quem seria eu sem meus algozes? Quem seria eu sem minhas tristezas? Quem seria eu sem perder e ganhar e chorar e gritar e espernear e desistir e respirar fundo e... E recomeçar. Quem seria eu? Sem os beijos, os toques, os cheiros, os sentimentos, quem seria qualquer um de nós se não um efemeróptero adulto que sabe que vai morrer e nunca, jamais, vai tentar nada para fazer com que isso valha a pena?
Por favor, que tudo acabe na morte, obrigado! Não tenho qualquer intenção de viver num mundo sem sorrisos e choro, sem amigos e inimigos, sem raiva e calma, sem abraços e tapas. E a maior diferença entre nós e efemerópteros adultos que morrem entre uma e vinte e quatro horas é que nós podemos acabar tudo quando quisermos. Nós podemos parar de apostar e dar fim a isso tudo. Uma faca no pulso, uma corda no pescoço, um choque elétrico, duas dúzias e meia de comprimidos, o diabo que for. Mas nós não paramos. Nós sempre acreditamos que podemos ganhar a aposta um dia.
Por favor, que tudo acabe na morte, obrigado! Porque às vezes, nós ganhamos a aposta e quem perde tudo não somos nós. Às vezes, quem vai embora não somos nós, mas a vida. E de alguma forma ela nos leva juntos porque a vida é trapaceira. Mas nós não desistimos; nós nunca desistiríamos: nós inventamos a trapaça e um dia nós vamos trapacear. Um dia nós vamos ganhar a aposta e a vida irá embora sozinha, sem nos levar junto. Talvez. Possivelmente. É incerto. Incerto de uma incerteza que não há no fato de que, caramba, eu não me importo de jeito nenhum com quem ganha a aposta enquanto eu continuar apostando! Porque a aposta só existe enquanto eu apostar. O importante não é ganhar ou perder. O importante é continuar apostando essa grande aposta que é a vida.
Então, pela última vez, por favor, que tudo acabe na morte, obrigado! Que tudo tenha seu fim na morte! Porque ainda tenho muito a viver, porque tenho muito amor para dar – e pode-se dar um amor imensurável para uma única pessoa, confie em mim – porque tenho muita felicidade para ter, muita tristeza para sentir, muita coisa para apostar e um jogo, que só tem fim quando eu decidir que precisa ter, para jogar!
Por favor, que tudo acabe na morte, obrigado! Porque eu tenho muito para viver e viverei todo esse tempo como deve ser.
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Contos
Short StoryContos, geralmente psicológicos, que escrevi ao longo da vida Todos contém a data no início