29 de outubro de 2019
As viagens de trem diárias sempre foram momentos de tensão absurda na minha vida. Sendo preciso, aliás, as esperas por trens sempre foram momentos de tensão absurda na minha vida. Tudo faz muito pouco sentido: quantidades absurdas e enervantes de pessoas espalhadas; lutas físicas e embates suados na tentativa de garantir um lugar para permanecer sentado por não mais que metade de uma hora; a total ausência de uma figura secundária para prender a atenção enquanto esperamos — veja, em rodoviárias e pontos de ônibus podemos ver carros e linhas diferentes das nossas indo e vindo e, quem sabe, uma televisão vez ou outra, dando o mínimo de ocupação a um tempo que de outra forma seria claramente inútil.
Nada disso é agradável de forma alguma para mim. Constrói, peça a peça, em duplas de segundos, um período lastimável de ansiedade. Além de todas as problemáticas relativas à miséria que é a espera de um trem, é um tempo longo o suficiente para encontrar alguém que você não espera (e, honestamente, quando não espero encontrar alguém é sempre um encontro ruim, seja a pessoa boa ou ruim) e curto o suficiente para não permitir que nenhuma conversa se finde como esperado (não tenho absolutamente certeza alguma de qual dessas duas situações é pior).
Com isso em mente, repito que qualquer espera de trem é um dos períodos mais miseráveis da vida de um ser humano, e se repetindo no volume que costuma ter em grandes capitais torna uma parte imensurável da vida, também, miserável. Dos piores tipos de miséria, aliás, pois é nada se não inevitável. A menos que prefira passar um tempo absurdo em trânsito (que apesar de gerar menos ansiedade, é bem mais demorado), sua única opção de deslocamento é o maldito trem.
Na última semana ou coisa do tipo, construí, de alguma forma, um projeto de encontro; depois de tempo demais sem nada assim — possivelmente por sofrimento demais, possivelmente por incapacidade de ser normal o suficiente, mas definitivamente por algum motivo forte — alguém interessou-se o suficiente na cabeça bagunçada e sem direção clara que trago presa a meu pescoço no dia-a-dia. Disso, surgiu o projeto.
Assim como todo caminho a ser feito, esse teria de ser, também, de trem. Era, no entanto, uma situação especial: além da ansiedade comum e esperada, oriunda da eterna e tediosa espera, havia de colecionar, também, ansiedade relativa a toda ideia de encontro e de reconstrução de uma possível vida amorosa. Como tentativa de alívio, observava tudo ao meu redor tentando encontrar qualquer situação possível que atraísse minha atenção e limpasse minha mente.
Cruzei olhares.
Retornou a meu estômago toda a sensação que tive quando, anteriormente, pensei em como é ruim encontrar pessoas inesperadamente.
Concluí, naquele momento, que realmente intensifica-se o mal estar baseado na pessoa.
Os olhos que fitei eram, de fato, inesquecíveis. Não se esquecem, de forma alguma, olhos de uma pessoa com quem se passa tanto tempo junto.
Veja: a realidade mais metuenda da vida humana é que a memória não trabalha em favor de ninguém. Há quem se sabote o suficiente para pôr em questão que a memória sempre trabalha em desfavor de si; descreio disso. O fato é que de tudo se extrapola algo ruim e algo bom, e é presunçoso demais crer que o mundo conspira contra você. Reflito e sei que penso tais palavras com a mesma mente que conspiro contra mim.
É desta jornada mental que sei, através de nada além dos olhos, que a pessoa a não mais que dez passos de mim é a mesma pessoa com quem dividi um punhado ou dois (ou três ou mais, pouco importa na dor) de anos da minha vida, em um relacionamento pouco conturbado mas que, de uma forma ou de outra (por um problema, ou talvez por outro, ou, sabe-se lá, nenhum), findou-se.
YOU ARE READING
Contos
Short StoryContos, geralmente psicológicos, que escrevi ao longo da vida Todos contém a data no início