Dois Copos de Leite

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23 de janeiro de 2017
desenho por Joyce Santana da Silva

Piscava os olhos da mesma forma que fazia tudo no seu dia-a-dia: ceticamente. Levantou-se da mesma forma cética, arrastando os lençois cuidadosamente pela cama para evitar um trabalho desnecessário em arrumar a cama mais tarde. Seus pés tocavam o chão frio, causando arrepios por toda sua espinha, enquanto seus braços se entrelaçavam para aliviar-se. Seu ceticismo era tão poderoso que sequer acreditava no frio; era melhor assim: caso se preocupasse demais com o frio jamais chegaria ao trabalho em tempo adequado, visto que a água era semelhante nesse sentido.

Como de costume, agia sob um metodismo rígido e preparava seu café da manhã o mais rápido possível; para isso, precisava ser o café mais rápido a ser preparado possível, também. Pão, manteiga e café preto instantâneo sem gosto nenhum, mas com cafeína em proporções contrárias, sendo o suficiente para manter-se acordada pelo resto do dia. Não gostava de dormir, então a cafeína passou a ser necessidade antes de vontade.

Vestia-se às correrias, escolhia qualquer roupa, batia a porta e trancava. Tudo da mesma forma diariamente. Acreditava que a rotina era o milagre do século e sem ela nada se fazia. Sem vê-la, o bater de porta de quando saía e quando, algumas horas depois, entrava era o mesmo. Seus dias de trabalho eram pouco importantes, pois fugiam à rotina. Permitia-se realizar todas suas ações mecanicamente. Dessa forma, suas ações diárias eram as já descritas e um intervalo ignorável de tempo que era seguido pela abertura da porta, a entrada e mais ações rotineiras que incluíam jantar, banhar-se e dormir. Uma vida simples e ciclicamente viciosa, exatamente como gostava.

Tudo isso tinha explicação, no entanto: não tinha tempo a perder com quebras de rotina ou ações trabalhosas, e tudo era consequência do próprio tempo numa proporção diferente; no tempo em que vivia, não havia muito tempo livre. Caso se preocupasse demais com quebrar a rotina tornaria-se rapidamente angustiada, visto que a tendência é que não conseguisse. Assim, levava as coisas ao extremo; nunca soube ser ponderada ou razoável e os polos lhe agradavam. Por isso, nem sequer parava na rua para conversar com as pessoas; aliás, se conversasse com as pessoas seria entre passos ideais de sua rotina, sem quebrá-la completamente como cria que aconteceria.

No entanto, um dia qualquer sua rotina se quebrou em níveis muito superiores ao que gostaria. Abriu a porta de casa ao chegar do trabalho e prosseguiu com suas ações habituais: pendurou a bolsa na maçaneta da porta do quarto, soltou o cabelo e trocou de roupa. Não havia notado, no entanto, que dois olhos a acompanharam no percurso sala-quarto, tal como não ouvira, afundada nos pensamentos rotineiros, a voz baixa que lhe chamava "Olá".

Prosseguiu a andar pela casa em direção à cozinha e, mais uma vez, não ouvira a voz baixa que lhe chamava "Olá". Talvez não quisesse ouvi-la fazia parte de sua natureza cética ignorar o inesperado e por isso não o fazia. Se punha a cortar, ferver água, mexer botões, e a não ouvir a voz já não tão baixa que exclamava aos gritos "Olá, moça!". A esse ponto, pensava que algum som a cercava, provavelmente de uma mosca ou uma abelha; e justamente delas não tinha tempo para cuidar.

Por fim, a voz atingiu um timbre agudíssimo em que reclamava estressadamente "Dá 'pra' me ouvir?". A surpresa tomou conta da mulher que, ao encontrar o inesperado pela primeira vez em sabe-se lá quanto tempo, derrubou a panela que segurava na mão. Seus olhos se arregalavam mais a cada segundo que encarava a mesa que diferente do que deveria não estava vazia. Seu coração acelerava também pela primeira vez em sabe-se lá quanto tempo.

Defronte a ela lhe encaravam olhos como os seus em cor, mas totalmente diferentes em brilho. Sua altura, no entanto, se opunha mais que totalmente: quem via não devia ter mais que um metro e trinta e cinco, talvez um metro e quarenta. Sentava-se numa das cadeiras que não havia sido ocupada há, igualmente, sabe-se lá quanto tempo, balançando suas pequenas e magricelas pernas para frente e para trás. Seria justo dizer que a garota era o oposto da mulher: a primeira se divertia com a situação adversa e tinha um ar adequado a isso, representando uma incomparável alegria; a posterior se perguntava desesperada o quanto isso afetaria sua rotina e recorria ao ceticismo para questionar o quão real era a pequenina.

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