Capítulo 1

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Então ela me encontrou. No exato momento em que eu estava em cima do muro, com uma perna para dentro e outra para fora da escola. Então eu estava com um cigarro na boca, uma garrafinha de vodca no bolso e a mochila nas costas. Não é motivo para fazer um escândalo tão grande. Pelo menos, dessa vez, a Sara Montezuma que vos fala não estava tomando banho na piscina infantil só de lingerie, como havia acontecido algumas semanas antes.

Então ela precisaria agradecer, e não gritar horrores, telefonar para o meu pai no hospital e dizer algo como: Venha buscar a inútil da sua filha AGORA!

E então ela disse que meu pai deveria encontrar uma instituição mais adequada ao meu comportamento e me expulsou o mais rápido que pôde.

Papai não estava nada feliz. Por mais que eu tentasse explicar, tudo o que ele fazia era gritar mais um pouco. E fez isso por mais da metade do caminho até nossa casa. Só quando já estava de saco cheio, tentei acalmá-lo:

– Isso é pelo que a diretora disse no meio de todo aquele sermão? Você não devia acreditar em tudo o que a bruxa velha fala, paps. Tenho certeza de que ao menos uma escola nessa cidade vai me aceitar, não importa o que eu tenha feito para ser expulsa.

Mas meu pai sacudiu a cabeça para os lados, sem me dar muita atenção:

– Eu não vou perder você, Sara. Não vou. Vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance pra não perder você também.

Foi quando entendi onde ele queria chegar. Certamente não tinha nada a ver com a diretora ou o fato de eu ter sido expulsa. Tinha a ver com tudo o que aconteceu.

Quando meu pai tinha onze anos, e as pessoas ainda o chamavam de Haroldinho, – isso antes de ele virar Haroldão e, em seguida, Dr. Haroldo – um garoto levou um corte feio na cabeça durante o recreio na escola. Foi meu pai quem ficou com esse garotinho até a ambulância chegar e levá-lo para o hospital. E foi meu pai quem conseguiu fazê-lo esquecer da dor.

Depois desse dia, os dois não se desgrudaram. Estudaram na mesma faculdade de Medicina em Minas, moraram juntos e mudaram para São Paulo juntos. Quando casou, esse garotinho, que mais tarde se tornou o obstetra e professor universitário de medicina Joel Bosi, comprou um apartamento em Higienópolis. Um ano depois, papai conseguiu comprar o apartamento ao lado. Cresci com praticamente dois pais. E, considerando que a minha mãe foi embora quando eu tinha cinco anos, apenas uma mulher dentro de casa: minha madrinha Vitória.

Uns quatro meses antes da minha fatídica expulsão, o Joel estava voltando do hospital tarde da noite, quando o carro dele foi abordado por quatro homens armados. Sei que parece coisa de noticiário antes da novela, mas foi exatamente o que aconteceu. E foi exatamente o que o noticiário narrou. Foi o que todos os noticiários narraram, na verdade, durante semanas, até aparecer alguma notícia mais fresca e sangrenta pra ocupar o lugar. Ele levou três tiros e morreu cinco minutos depois dos paramédicos chegarem à cena. Dessa mesma maneira, crua e seca. Tudo o que os caras levaram foi um notebook e cinquenta pratas.

Mas não quero falar sobre isso. Doeu tanto em mim, quanto no meu pai, quanto na Vitória e no Gabriel – também não quero falar sobre eles agora – e em qualquer pessoa que conhecia o cara. Porque, pra gente, não existia ninguém melhor que o Joel nesse mundo.

Fitei meu pai por um instante, de uma maneira carinhosa que são raras as vezes que uso.

– Você não vai me perder, Doutor Haroldo. Eu sei me cuidar!

– De que jeito, Sara? De que jeito você sabe se cuidar? Fugindo da escola? Sendo expulsa? Desaparecendo o fim de semana inteiro e voltando pra casa no domingo, ainda bêbada de alguma festa que você foi na sexta-feira?

Tudo o que ela querOnde histórias criam vida. Descubra agora