Capítulo 3

19 0 0
                                    

O tempo que levo para ir à casa da minha avó me deixa pensar mais um pouco e lembrar.

Hoje não bebi e nem tomei nenhum remédio então começo a sentir o calor, enjoo e tontura causados pela abstinência. Espero que não demore muito para que eu possa me sentir um pouco mais decente. O céu está escuro e um vento forte faz redemoinhos na rua. A chuva não deve demorar a cair.

Eu vou precisar estar limpa e com a mente concentrada para o que vou fazer. Estremeço só de pensar e quase posso sentir a sensação de deixar outro ser invadir o seu corpo. Por mais que eu relaxe e deixe as minhas portas espirituais abertas, o corpo naturalmente tenta se proteger, então a entidade força passagem. A dor é emocional e psíquica, como se um ataque de pânico trouxesse à tona todas as minhas tristezas e angústias. Nunca é confortável, não importa o quão pacífico é a entidade. No fim ninguém é muito pacífico quando tem a oportunidade de voltar a viver, então sempre quando tento expulsá-lo de dentro de mim, fico exausta como se lutasse uma guerra.

Normalmente com a minha avó, eu sempre deixava espíritos fracos entrarem. Era só para que parentes pudessem trocar algumas palavras e saber se estava tudo bem. Geralmente não estava.

Mas nos últimos dias da minha avó, ela e as outras bruxas do coven, aquelas das quais era mais próxima, estavam fazendo contato com algo diferente e mais forte. Algo que nunca me pareceu realmente morto, apenas em outro lugar. Essa coisa fez minha avó sangrar até morte. Depois, o coven tentou novamente entrar em contato comigo, queriam continuar os rituais. Me afastei totalmente e me escondi o melhor que pude.

Como um presságio, quando os pneus do meu carro tocam a estrada de terra que vai até a chácara de Elida, uma chuva torrencial começa a cair. Ligo o limpador de para-brisa, mas a tontura que sinto só piora, então tenho que diminuir ainda mais a velocidade.

Paro na frente da casa, abro uma frestinha da janela e espero que a chuva diminuía um pouco. Acendo um cigarro, e fumo lentamente. A casa parece algo morto com o jardim maltratado e as luzes apagadas. Mandei desligar a energia elétrica faz tempo, então imagino que minha irmã ainda está com as velas acesas. Velas me causam arrepios, porque me lembram rituais. Era a parte que eu menos gostava quando tentei ir na igreja católica.

Vislumbro a imagem fantasmagórica da minha irmã na janela de vidro embaçada, segurando uma vela. Tento imaginar o que ela está pensando. Será que me culpa pela morte de Alice tanto quanto eu me culpo e me vendo ali não sente nada além de uma dívida cumprida? Será que que ela sente medo por mim?

Estou sentindo uma mistura de frio e calor, e começo a pensar como seria bom beber algo com álcool para me deixar mais leve e ajudar com o frio. O calor aos poucos passaria também.

Termino o cigarro, mas a chuva não parece querer dar trégua. Dane-se. Abro a porta e saio na chuva, não correndo, deixando a água fria amenizar o calor e a tontura. Depois me preocupo com o frio.

Carrego uma mala com algumas roupas, e quando entro na casa vejo os olhos da minha irmã se demorando nela. Ela sabe que eu vim para ficar alguns dias e está aliviada.

Ela corre para dentro e volta com uma toalha e me seca de forma maternal. Tenho vontade de abraçá-la e pedir para que não me faça entrar em contato com os mortos. Implorar para que não me use da forma que nossa avó me usou.

Mas não posso, ela é uma mãe em sofrimento, e o meu próprio, não pode se comparar ao dela. Engulo o choro e deixo ela me secar.

-Não quer colocar roupas quentes?

Nego com a cabeça, meio desorientada.

-Só preciso sentar e ficar sóbria.

Ela me leva até nosso antigo quarto. As duas camas ainda estão lá, intactas. É um quarto sem personalidade, apenas rústico e prático. Não parece o quarto de duas meninas, com as roupas de cama escuras, cômoda de madeira e guarda-roupa. Não tem desenhos colados nas paredes e nem brinquedos no chão.

Dom de Fogo e SangueOnde histórias criam vida. Descubra agora