Capítulo 1

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Quatro Bilúnios antes do Expurgo...


Havia poucos dias que ele chegara a Alikrunus, aquela pequena cidade imprensada entre dois rios lamacentos, e que parecia sempre úmida e pegajosa. Embora os cheiros lhe fossem indiferentes, ainda era pego de surpresa pelo fedor acre das ruas, tão forte que chegava até o alto das construções malfeitas, onde ele costumava ficar escondido.

O cheiro era ainda mais pungente em tardes terrivelmente quentes como aquela. O sol a pino feria sua pele, mesmo escura como um tronco de árvore. Suas asas negras e membranosas pareciam sempre envolvidas em um abraço morno e desagradável. Se ele fosse capaz de suar como as outras espécies, certamente teria o rosto inteiro molhado, uma sensação que com certeza não lhe fazia falta.

Era em tardes como aquela que ele entendia porque muitos de sua espécie preferiam as comunidades mais ao norte, nas montanhas, onde a terra era agraciada com a neve e ventos refrescantes e limpos. Não eram ventos tão bons para voar, mas ao menos não prostravam a vida como ali.

Uma gota fria escorreu com preguiça em uma de suas asas, causando-lhe um leve arrepio. Olhou para cima. O clima era tão sufocante que ele nem percebeu o céu cobrindo-se de nuvens escuras. Ao menos ali chovia. E chovia muito, quase todos os dias.

Quando mudou o corpo de posição depois de várias horas inerte, apenas para ficar de costas para a chuva iminente, alguns pedacinhos do reboco da construção caíram lá embaixo e se perderam na loucura que tomava as ruas. Talvez tenham acertado a cabeça de alguém, ele jamais saberia. E tampouco se importava. Criaturas de várias raças corriam como insetos em um ninho destruído, escondendo-se ou protegendo seus pertences enquanto o aguaceiro costumeiro - rápido, repentino, mas atroz - aumentava sem misericórdia.

Os pingos batiam com força em suas costas e trepidavam suas asas. Água pingava dos chifres retorcidos em sua cabeça, escorrendo pela testa e encharcando os olhos amarelos. Ele raramente precisava piscar, mas era impossível não fazê-lo com a visão tão embaçada como agora. Seu rosto alongado e anguloso devia estar ainda menos convidativo naquelas circunstâncias, caso alguém o visse. Não que fizesse qualquer diferença.

Os cabelos alaranjados, compridos e cheios de nós, tão descuidados e esquecidos, amoleciam com a água e colavam-se às suas costas.

A chuva encharcava também os trapos que vestia apenas por uma questão de hábito, não necessidade. Aquelas ainda eram as roupas que seu último Haar lhe dera, e que um dia foram uma túnica macia e aveludada, cara e ostensiva, com o cuidado de uma grande abertura em nas costas para as asas, e calças confortáveis e escuras, que se adequavam perfeitamente à curvatura incomum de suas pernas. Os tons de bom gosto combinavam entre si com maestria, diziam naquela época. Tudo muito bem arquitetado por uma mente que um dia amara exibi-lo como um artigo de luxo.

Mas agora, tantos ciclos depois, as belas vestes tornaram-se imundas, cheias de rasgos e fios soltos, manchas desbotadas do sol, uma visão que beirava o miserável e o aterrorizante. Pelo menos, era o que diziam hoje em dia.

Tudo isso lhe era indiferente. A tempestade ou o calor excessivo. Os grãos de areia que agrediam sua pele com o vento ou o frio da noite. Nada daquilo atrapalhava sua existência pacata e solitária.

E a chuva também parecia não afetar tanto assim a vida em Alikrunus. Ela continuou praticamente a mesma, só que agora debaixo de toldos cobrindo boa parte das ruas cheias de barro. Poderia até ser uma visão bonita, não fossem eles esburacados, manchados de bolor e esfarrapados em sua maior parte. Ainda assim, ele gostava disso: da vida que perseverava apesar das intempéries. Era isso que ele buscava. Era disso que ele precisava.

A Menina Branca (Degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora