Visão da dor

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Cláudia,  a vizinha, não parava de chorar. Acabara um relacionamento longo, uns sete anos, e não saia de casa. No começo Lídia havia ficado com dó, mas agora, num sábado de manhã e uma noite mal dormida depois, ouvindo os lamentos da vizinha, Lídia  decidiu bater na porta da conhecida. Lavou o rosto, engoliu um café de ontem que havia sobrado e que foi tomado mais por hábito do que por qualquer sensação boa que a bebida trouxesse naquele momento. Voltou ao banheiro e se olhou no espelho. Estava horrível!

Começou a pentear os cabelos pretos, fazendo uma busca visual pelo cômodo atrás dos itens de higiene e do inseparável estojo de  maquiagem ... Até os olhos cruzarem com algo no espelho.

Foi só de relance, mas tinha visto algo, algo que tinha dado uma má impressão na garota. Sentiu um arrepio percorrer a espinha. Olhou em volta rapidamente vendo a porta do banheiro aberta que levava para sala, a cortina clara bloqueando a luz do sol da manhã,  o box fechado denunciando uma calcinha largada no piso. Nada de mais.

Os lamentos haviam diminuído no apartamento ao lado, e isso só podia ser um bom sinal. Os pensamentos se desdobraram em inúmeras idéias de passeio e relaxamento. Um parque, shopping,  um cinema talvez...

- Não pisque. - Como por mágica o rosto  de Lídia parou, fixo na própria imagem, a lógica falha do momento refletida no olhar frenético em busca de respostas, indo de um canto a outro do objeto reflexivo. As pálpebras fixas, abertas e deslocadas da expressão facial. Nada além dela.

- Estava com saudades... -  o corpo paralisado, tenso começou a pesar, ir pouco a pouco pra frente, a inclinação forçada e a sensação incomoda de algo pesando, algo se aconchegando sobre seu corpo. Os olhos começaram a lacrimejar,  forçados a ficar abertos tanto tempo, doíam e ardiam impiedosamente.

Sentia um corpo pressionando o seu, as mãos se posicionando na pia e o rosto encostando no espelho frio, os olhos abertos sem realmente ver nada. A sensação de impotência era insuportável, enlouquecedora!

A boca aberta começando a deixar fios de saliva caírem lentos, passeando relaxadamente pelo pescoço de Lidia, desenhando rios de frustração por seu corpo acabando ora ou outra no ralo da pia do banheiro.

Pássaros cantavam lá fora e os sons da cidade continuavam os mesmos lá embaixo. Carros, pessoas, histórias,  risos e prantos, chegadas e despedidas. Tudo normal. Normal...

- Sei que você queria falar muitas coisas. Nós sabemos como você é falante - sentiu na nuca , do lado esquerdo  a respiração quente, áspera,  rascante, uma risada baixa, guardada somente para aquele momento. Bizarramente carinhosa,  familiar e confidente. - Hoje é um dia lindo minha querida. Hoje é um dia deliciosamente lindo, meu amor. - era uma mescla de vozes, doentes,  enjoadas em seus próprios males e dores.

Os olhos completamente vermelhos desceram pesados como se nunca tivessem realmente realizado sua função antes. Uma, duas, três,  várias vezes,  descontroladas sem ritmo, procurando somente alguns momentos de alívio antes  de um novo movimento. Claro, escuro, claro, escuro, claro, escuro, claro, escuro... vermelho.

Claro, escuro.

A respiração cansada não tinha noção correta de quanto tempo já se passou. Sabia que estava no chão gelado do banheiro, a torneira aberta e água caindo pelo piso , a calcinha ainda caída dentro do box. A cabeça doendo um pouco e a camisola colada no corpo,  pegajosa, um corpo estranho ... Sentiu um enjôo súbito e tentou virar o corpo , mas  estava pesada, lenta e começou a se afogar com cada golfada de comida que tentava voltar, tossindo alto enquanto o corpo se arqueava de maneiras bizarras.

O peito doía de modo excruciante, a garganta áspera,  e depois de alguma luta por controle, Lídia estava recostada na parede abaixo da pia, os olhos ainda vermelhos, doendo, a cabeça martelando violentamente agora. A visão embacada por lágrimas que rolavam involuntárias,  deixando manchas das mais variadas cores preenchendo o campo de visão . Soluço. Tosse. Uma dor puxando outra numa corrente maldita. Claro, escuro.

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