Dor da visão

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Lídia não tinha sono, mesmo com seu travesseiro preferido, quietinha em sua cama, agarrada com o tubarãozinho de pelúcia, companheiro fiel das últimas noites, longas e cansativas noites.

E tinha a mulher chorando...

Um choro triste, sentido, daqueles que doem no peito quando ouvidos. As vezes conseguia ouvir uma ou outra palavra que não entendia muito bem, dita com certo rancor antes de uma nova torrente de choro e lamentos. E Lídia não aguentava mais!

Toda noite saia de sua cama, tentando fazer o menor barulho possível,  atravessava o longo corredor do casarão com o tubarão a tiracolo, chegando a uma ainda improvisada sala de estar, via a luz acesa vinda de um dos banheiros, a porta escancarada e aquele choro lamentoso. Insistente. Doentio...

A menina já havia reclamado com a mãe,  que não dera atenção,  colocando a culpa no novo ambiente, haviam mudado da capital para uma fazenda na regiao central do país, consequência da transferência do pai militar. O pai estava ocupado em suas novas funções e apesar de mais atencioso com a menina, não deu o devido cuidado ao assunto. Tentou a empregada, que desdenhou de Lídia enquanto lavava a louça,  não antes de fazer uma rápida oração e um sinal da cruz para garantir. Desde então se calou. Tinha ainda um mês de férias, tempo suficiente.

Aquilo era dela, e ela tinha de resolver. Essa idéia foi se instalando com o decorrer das noites em claro, uma fixação,  um problema a ser solucionado. Algo aventuresco, comparável a uma indigesta viagem às entranhas de um cemitério a noite.

Desde então toda noite, depois de tentar, em vão dormir, ela se encaminhava para a sala de estar, se recostava atrás do sofá maior e com o tubarão amigo, ficava a noite inteira olhando o banheiro aceso, ouvindo o choro melancólico,  vendo aquilo, vendo a mulher alta, parada numa pose estranha e incomoda, os dentes brancos e retos, emoldurados pela pele velha do rosto, a roupa rasgada de um dos lados revelava algo que era pra ser um seio, ali seco e achatado. Mais um saco de pele dependurado no tórax daquilo.

E aquilo a olhava, olhos pequenos e vermelhos, inquisidores, exigentes. De certa maneira espertos, inteligentes e maquiavélicos. Os cabelos pretos, fios de sombras caindo pelos ombros.

Toda noite. Várias noites. As duas se olhando até o cansaço abraçar a menina. Até o pai encontra-la, desligar a luz do banheiro vazio e coloca- la na cama, cobri-la cuidadosamente e partir para suas obrigações no quartel.

...O olhar cansado do homem na inocente o fez lembrar da discussão com a mulher, dias antes. Havia sido um golpe duro no estilo de vida das duas. Aquele dia haviam brigado,  e no impulso tinha batido na esposa. Fora um tapa, não justificável de qualquer maneira. Desde então o casal esfriou, olhares e tentativas de reconciliação em vão. O quartel era muito menos um quartel e muito mais um amontoado de problemas. E tinha Lídia...

Desde a mudança a menina aparecia pelos cantos da casa. Ainda brincava com os filhos da empregada, as vezes ficava o dia inteiro fora. E mais recentemente estava ali. Sempre ali. Toda manhã,  abraçada aos joelhos, com o bicho de pelúcia vigilante. A luz do banheiro ligado.

Não pode resistir a um pensamento incompreensível que passou e voltou a sentar na beirada da cama da menina, passou a mão pelos cabelos castanho escuros, dando um olhar demorado àquela face serena, deu num beijo  na testa de Lidia. A pequena resmungou algo antes de virar para um canto. Ele levantou e começou a sair, mas antes de cruzar a porta ele ouviu:

- Pai, pai... - Lídia tinha nos olhos marejados, parecia feita de algum material extremamente frágil,  a voz embargada o chamando, cortou o coração,  fazendo-o voltar rápido e embalar a filha que soluçava baixinho. Repetindo algo ainda incompreensível. 

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