Capítulo 2

282 11 10
                                    


Dako

Abro a porta do carro e, incapaz de evitar que algumas gotas caiam sobre mim, chacoalho o guarda-chuva, antes de me sentar no amplo e superconfortável banco traseiro da SUV, alugada em cima da hora. Não preciso olhar para o retrovisor para ver que Levi, meu motorista-segurança-pé-no-saco, me encara aguardando uma explicação plausível para minha atitude impulsiva. Entenda, por mais exuberante que seja a vida de uma estrela do rock, não é todo dia que dá na telha de fretar um jatinho e voar para São Paulo por puro capricho. Isso é o que ele acha que eu fiz... ou achava. Inteligente, o moreno brutamonte fica de bico fechado. Ele sabe muito bem o que pode acontecer caso me incomode com conversa fiada.

Não que eu tenha coragem de dispensá-lo, acima de todas as suas funções cumulativas, Levi é meu melhor amigo desde o ensino fundamental. Quando meu primeiro hit estourou nas rádios, fiz questão de levar meu braço direito comigo, mesmo que ele não entendesse porra nenhuma de acordes e partituras. O moleque magrelo encorpou com o passar dos anos, se dedicando fielmente à academia. Para quem já curtia uma briga na porta da escola, fazer algumas aulas de luta e defesa pessoal foi fichinha. Em menos de dois meses, Levi era o melhor candidato à vaga de guarda-costas a la Kevin Costner.

Não, cara, não sou gay, nem me pareço com a Whitney Houston, mas confesso que me empenho para manter o shape e... tenho um rosto bonito. Não sou eu quem diz, e sim as centenas de capas de revista que já estampei — a maioria sem camisa, para o desgosto da minha avó. Então, pode ficar sossegado que não tenho um caso de amor com meu segurança. Muito pelo contrário, Levi é útil para momentos de vida ou morte. Ele levaria um tiro por mim, fato.

Okay! Sei que isso é exatamente o que acontece no filme do século passado, mas faça-me o favor! Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Eu, Murilo Dako, um dos roqueiros mais renomados desse país, mereço mais consideração. Se eu te contar um terço das situações que tive que enfrentar, aposto que vai se horrorizar. Ou sentar para rir. Antes de qualquer coisa, preciso esclarecer que a maior parte da minha base de fãs adolescentes cresceu comigo, então não corro mais o risco de encontrar garotinhas de 13 anos tentando invadir meu ônibus, ou fingir que seus parentes trabalham para mim.

E não digo que sou bem-sucedido por ter o rei na barriga e me achar o cara. Nada disso, de acordo com os top 100 dos últimos sete anos, disputar um lugar no sol entre pop, funk, sertanejo e techno é para poucos, e me orgulho para cacete por cada um dos meus singles terem figurado entre os dez mais tocados por semanas. Não só nas rádios, mas nos serviços de streaming também. Numa época em que a música eletrônica e manipulada invade as residências do Brasil como uma praga, o rock raiz está em extinção, então não me julgue por eu inflar o peito com vontade e gritar "meu nome está lá, porra!".

— Vai me contar o que está acontecendo, Dako? — Levi, infeliz com meu silêncio prolongado, não se contém e tira a minha paz.

Como se eu estivesse em paz. Não sei o que o substantivo significa desde o velório do meu pai, que o diabo o tenha! Pois é, estou sendo cruel, mas você também seria se soubesse o que o crápula teve a capacidade de fazer. E pensar que, se meu velho ainda estivesse vivo, eu estaria bem longe da capital paulista, sem ter ideia do que ele esquematizou há quatro anos.

Encaro o portão da casa que deveria ser branca, mas o tempo judiou e a tintura apresenta um aspecto encardido e amarelado. Se não bastasse a falta de cuidado com o exterior, o portão é daqueles com lanças na parte de cima, com uma chapa amassada de latão prensada à parte inferior das barras de metal, decerto para evitar que animais de estimação fujam. Para completar, dá para avistar uma roseira vermelha despontando pelo canto do muro cinza, decorado com pichações repulsivas. Nada contra o grafite, acho o máximo e apoio a arte com fervor, mas pichar um muro com letras diversas e tamanhos desproporcionais? Isso não.

Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Dec 20, 2019 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

Um Pai de PresenteOnde histórias criam vida. Descubra agora