CINCO CENTÍMETROS POR SEGUNDO

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Em um ano nós vivemos 31.536.000 segundos e cada um deles é precioso. Às vezes nós planejamos cada acontecimento do nosso futuro com precisão, colocando cada passo na balança da razoabilidade, esquecendo que o destino joga dados sem se preocupar com os nossos planos. Eu não pretendia me apaixonar por Myung no Natal passado, muito menos ter uma família grande, barulhenta e inesperada ao redor da nossa ceia neste ano. Nunca, jamais, sob nenhuma hipótese me passou pela cabeça usar o pronome "nós". Mas, como já dito, o destino flerta com a sorte e o azar é de quem tenta medir o futuro com uma régua, sem perceber as saias justas do presente.

- Você ainda está na Terra? - Yoongi me cutucou na bancada da cozinha segurando a última garrafa de vinho de arroz da adega.

- Eu só não acredito que ela voltou pra casa - Myung parecia brilhar enquanto brincava com os sobrinhos, tão encantada quanto eles com as luzes brancas decorando os galhos - acho que criei uma dependência estranha de ter a minha esposa em casa.

- Bem-vindo de volta a vida de casado - satirizou, fazendo questão de lembrar que ele mesmo desencalhou. Depois me deixou novamente a sós com a minha nova paisagem.

Entre os dezembros de um ano e outro nós sentimos o efeito dos segundos como nunca antes. Em janeiro eu fiz greve de sexo até Myung Hee aceitar se casar comigo, em fevereiro Yoongi partiu para Nova York em busca dos seus sonhos, em março meu pai abriu uma padaria em Hongdae, ainda em março, minha mãe voltou para casa e desde então meus pais entraram em guerra. Para abril não passar em branco, Myung e eu casamos. Em maio meu avô de 82 anos decidiu fazer um mochilão pela Europa e fugiu de casa. Junho foi o mês de férias dos acontecimentos marcantes, então comemoramos o aniversário de Kwan. Em julho, minha primeira e única briga feia de casal resultou em divórcio, em agosto eu perdi toda a minha dignidade e fiz um escândalo na audiência do divórcio na falha tentativa de recuperar meu casamento. Em setembro Myung foi para a França, e desde então eu senti como era passar os dias em branco. Em dezembro eu atribuí um significado poético às unidades de tempo de Planck.

Eu deveria contar o meu final feliz a partir do Natal passado, seria a distribuição de fatos aceitável em uma narrativa linear, mas o fato é: eu não sei se estou próximo do fim, de fato. De certa forma eu sempre insisti em colocar pontos finais em histórias que não estavam nem próximas de acabar. Fui tolo o bastante para acreditar que minha mãe jamais voltaria para casa ou que nunca seria capaz de me reconciliar com o meu pai, que seria incapaz de gostar de chocolates ou simplesmente acreditar que o amor era mais do que só uma baboseira de Platão, no entanto, um ano depois eu estava escorado na bancada da cozinha espiando todas as minhas certezas caírem por terra enquanto minha família conversava na sala sem ter idéia do fenômeno físico que explodia dentro da minha cabeça enquanto eu devorava um a um os chocolates que harabeoji trouxe da Noruega. Só havia um ponto final na vida e eu precisava aceitar isso de todo o coração para viver sem arrependimentos, por essa razão minha narrativa começa no fim de julho, com Myung e eu presos no carro durante mais uma das incontáveis chuvas torrenciais do meio do ano, quando o trânsito se torna estático e as linhas de metrô ficam intransitáveis.

Eu guardava um segredo, eu achava que guardava um segredo, na verdade. Um homem casado precisa aprender que quando a esposa pergunta o que está acontecendo, muito provavelmente, ela já sabe de tudo, ou pelo menos acha que sabe. O fato é que Myung seria capaz de lidar com as piores verdades, mas nunca com as mentiras aceitáveis e eu nunca fui prudente o bastante com as minhas relações afetivas para assumir a responsabilidade de verdades doloridas. Esconder parecia sempre mais sensato para mim, aparentemente apenas para mim.

- Você não está sendo razoável - falei pela décima vez enquanto apertava os nós dos dedos no volante.

- Eu não estou sendo razoável - ela afirmou tranquilamente enquanto observava o trânsito completamente travado e suspirava, de certa forma aquela atitude me intimidou - você age como se estivesse escondendo um corpo há meses, mas eu que não estou sendo razoável.

Especial de Natal: EpílogoOnde histórias criam vida. Descubra agora