Capítulo Único

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Era o segundo enterro que ele ia esse ano.

Tinha chegado a época de renovação do seu círculo social. Ele achava que ia demorar mais já que, dessa vez, tivera a precaução de se envolver com pessoas saudáveis e sensatas, que não arriscariam a pele em alguma briga de bar ou pegariam a Peste com facilidade.

Pelo visto tinha se enganado. De novo.

A dor da despedida já era algo que tinha acostumado a sentir, mas isso não fazia dela menos pesada em seu coração.


Andava pelo teto novamente. Tinha bebido outro barril do bar perto de casa, mas já sentia o álcool perdendo o efeito no corpo imortal. Era incrível como mortes faziam ele repensar toda a sua existência, sobre a fragilidade dos humanos e a agridoce vida eterna.

Chutou algumas das tábuas soltas no teto do casebre que morava. Era uma casa antiga, elegante, que fazia parte do conjunto arquitetônico clássico das moradias da rua perto da Lapa. Já tinha entrado em todas aliás, mas nunca mordera algum vizinho. Deveria, mas não gastaria as pobres papilas gustativas com o sangue amargado de arrogância e mesquinhez passado de geração em geração naquelas bandas. E, mesmo não se dando bem com os colegas, ainda fazia o mesmo ritual quando alguém ia embora: notícia, enterro, bebida e teto. Décadas se passavam, e as mesmas atitudes iam e vinham, repetindo-se no looping entedioso da eternidade.


Sentado na poltrona gasta de veludo verde, em frente ao grande quadro pendurado ao centro da parede, brincava com a barra de um de seus vestidos de renda, remoendo a própria história. Achava engraçado o conceito de "passado" dos humanos: algo recente ou não, que aconteceu mas não se manteve. Para ele, o conceito não havia sentido. Toda a sua vida seria um enorme passado, pois ela nunca acabaria de fato. Não havia distinção dos três tempos mundanos (passado, presente e futuro), já que viveria sempre relembrando, o momento nunca passaria e o além não haveria de chegar. Mesmo assim, pôs-se a pensar, pela incontável vez, sobre as coisas que aconteceram em sua jornada.

Olhou para os pequenos retratos dispostos ao redor da tela, cada um mostrando uma pessoa diferente, em épocas diferentes, e que, de formas diferentes, mexeram com o seu coração. 1845, 1760, anos 2000,... Inúmeros congelamentos de personalidades marcantes de seu "passado". A mais recente, de 2019, era da pessoa que havia sido enterrada mais cedo. Ícaro. Talvez o amor de sua vida dessa curta década que estava acabando, e, talvez, o único que o deixou tão à vontade para compartilhar o peso de uma vida inacabável e mais antiga que a própria História.

O pequeno moreno da zona norte, malandro que só, havia sido levado abruptamente da sua dolorosa e extensa existência. Não havia tido sorriso mais lindo brilhando nos bares cariocas; não havia som mais caloroso que sua risada ecoando nas ruas ladrilhadas vazias enquanto eles voltavam pra casa. Tudo parecia cinza, a cerveja mais amarga e as ondas mais silenciosas. Incrível, para alguém como ele, ficar tão afetado pela ida de mais alguém. Essa constatação, infelizmente, não fazia da despedida menos dolorosa.


Tinha perdido noção dos dias. Outros vinham ver se estava bem, mas a pequena expectativa de ver o moreno à sua porta fazia cada visita mais melancólica que a anterior. Sentindo-se mais confinado do que acomodado, saiu, depois de meses, para passear pelas ruelas da cidade; andando mais devagar que o próprio coração, sem ligar muito para onde estava indo. Chegou até a orla da Rodrigo de Freitas sem fazer a mínima ideia de quanto tempo havia se passado, por onde tinha ido e como havia parado lá; estava focado apenas no som dos carros correndo pela rua e no silêncio da sua cabeça.

De pé encarando a lagoa, com o vento batendo de leve sobre si e resfriando o corpo, viu as novas mudanças estéticas da vizinhança. Estava naquela cidade havia muito tempo, e tinha a certeza de que nada permanecia o mesmo por mais de um mês por ali. Excentricidade do bairro, inconstância da vida ou necessidade do cotidiano; não sabia qual o motivo por tanta adaptação, mas gostava. Não era nada que já não tinha visto, mas perceber a vida andando o fazia bem às vezes. Era necessário uma mudança de lugar para lembrar que a eternidade não precisava ser estática. As diferenças nos detalhes faziam a vida ter aspecto mais fluido, contínuo, mesmo que o tempo passasse diferente pra ele do que para o resto.

As lembranças começaram a brotar, enevoando-lhe o cérebro e fazendo-o chorar. Poderia passar por um bêbado qualquer, ali de pé olhando para a lagoa enquanto chorava, mas só ele sabia o quanto gostaria de ficar embriagado de fato numa hora dessas. A dor voltou a pesar no coração, e ele pôs-se a andar novamente, como se pudesse deixá-la para trás junto das outras saudades que colecionava ao longo da vida.



Ele gostava de anos pares, principalmente os terminados em 0. Estava em um hotel-chalé, no meio das montanhas andinas, bebendo do quentão entregue pela equipe de buffet do local, esperando pela contagem regressiva do início de seu 345º ano de vida e a virada para o ano de 2050. O frio fazia-lhe bem para a pele, deixava-a mais radiante, como se fizesse algum tratamento estético. Sua barba por fazer, emoldurando o rosto levemente cansado, combinava com o cabelo despenteado pelo vento que batia na varanda onde se encontrava.

Estava sozinho, mas com o aproximar do fim do ano, cada vez mais pessoas se arriscavam a ficar esperando fora do prédio. Ao fim, algumas dúzias de humanos estavam espremidos na varanda, comemorando, bebendo e brindando, desejando "feliz ano novo" nas mais diversas línguas. Ele observava mais afastado, alternando com a visão dos fogos. Tantos anos repetindo a mesma cerimônia e nunca se cansava; poderia ver mil queimas, em todas estaria feliz.

Um jovem esguio, pálido e de nariz robusto aproximou-se dele. Algumas palavras em espanhol foram trocadas, seguidas do francês polido de uma típica conversa parisiense. A surpresa do moço não foi contida, tentando adivinhar uma língua a qual o outro não soubesse tão bem, mas falhara em todas. Tantos anos de experiência adicionaram-lhe um extenso vocabulário poliglota, sendo fluente até em dialetos não mais existentes.

O loiro perguntou-lhe porque estava sozinho, afastado dos outros, mas não obteve uma resposta tão satisfatória. Seguiu o assunto propondo um brinde, rapidamente respondido, enquanto entravam no hotel para continuar a conversa. Estava no Chile em férias, era nascido russo, havia rodado o mundo e sabia falar no mínimo uns dez idiomas. Morava atualmente em Buenos Aires, mas pensava em ir para França. E todo o mistério pela personalidade isolada e quieta ia se desmanchando para o humano.

Foram juntos, semanas depois, para Provença, onde passaram alguns bons momentos no pequeno apartamento minimalista do humano. Mesmo indo e voltando de Buenos Aires, decidiu-se, por fim, mudar para França. Mais um início, mais uma mudança. A vida continuava fluida e seguia seu fluxo naturalmente. Era apenas mais um ano na sua longa jornada na terra, mais uma estadia no país, agora bem mais moderno do que a última vez; mas agora havia alguns detalhes novos para serem aprendidos e adaptados.

Ele gostava dos anos pares, afinal.

Mil anos em cincoOnde histórias criam vida. Descubra agora