Blue eyes

1.3K 73 36
                                    


New York. O que mais gostava na cidade que nunca dorme era que esta podia ser determinada como um organismo vivo, exatamente como uma pessoa, um indivíduo pensante. O único lugar do mundo em que me sentia em casa e chamava de lar. Os cheiros peculiares a tornavam única: o cachorro quente que você encontrava em quase toda esquina, a mistura de perfume e odores dos turistas, os pretzeis queimados, o lixo acumulado nas esquinas no final do dia... A cidade pulsante sempre me abraçou e me acarinhou quando eu voltava de alguma missão... arrasada, pensando se eu havia feito a escolha certa...

Não fora nem uma, nem duas vezes em que me perdi nos seus braços e no seu acalento. A cidade me entendida e dava o que eu mais precisava para esquecer o corpo ensanguentado do menino que havia desaparecido, mas que na verdade havia sido esquartejado pelo pai...

Parada no frio do outono em frente ao edifício de tijolos na E 51rd St com as minhas roupas molhadas pelos delicados flocos de neve que chegaram fora de época e que me diziam que eu deveria entrar. O táxi me deixara ali há exatos trinta minutos e eu ainda olhava para a janela fechada. Então, finalmente entendi. Nunca fora a cidade, ou o lugar. Sempre fora ela. Encontrei o meu lar no primeiro sorriso tímido que consegui tirar dos lábios carnudos, nas poucas vezes em que ela se deixou abraçar... quando seus pesadelos faziam com que ela deitasse na minha cama como um cachorrinho assustado e eu acordava enroscada com seu corpo no meu... no seu cheiro. Um nó começou a se formar na minha garganta, pois percebi que agora... não tinha mais lar... não tinha mais nada.

— Ficar olhando para a janela fechada não fará com que a nossa garota apareça magicamente, Latin lover. – Viro-me para voz tão querida e abraço Mark, o senhor de idade que me acolheu no passado. Sua enfermeira o estava acompanhado, pois já há muitos anos padecia com a Síndrome de Parkinson.

— E você resolveu sair para caminhar na neve? Quer virar a Elza de Frozen? – Brinquei arrancando dele uma risada. Nosso relacionamento sempre fora assim, cheio de brincadeiras, mas com muito respeito e carinho.

— Vamos entrar? – Sorri para Lucy, a sua enfermeira, e entramos no prédio que me trazia tantas lembranças. – Vai ficar lá em casa?

— Não, vou ficar na casa dela. – Mostrei a ele o chaveiro que tinha em mãos.

— Você acha isso uma boa ideia, Ash? Fique com a gente...

— Mark, eu... eu preciso. – Paramos em frente a porta do apartamento que ficava ao lado do seu. – Prometo que mais tarde passo lá para uma partida de xadrez, ok?

— Vou ficar esperando! – O velho me abraçou e, deixando um beijo na minha testa, andou com dificuldade para seu destino.

Abri a porta com a minha chave. Lembrei do dia em que ela me dera essa cópia dizendo que não admitiria que a sua melhor a amiga estivesse na cidade e fosse para um hotel. Então, eu sempre teria um quarto para mim, ali... naquele lugar que era tão seu.

Sabia que não era possível, mas eu tinha a esperança de que a encontraria sentada no confortável sofá da sala, enrolada num cobertor, tomando chocolate quente e assistindo filmes ruins na grande TV. Depositei a minha pequena mala de viajem no chão e liguei a calefação, pois estava morrendo de frio.

Todo o ambiente lembrava ela. Cada pequeno objeto, cada fotografia, cada bibelô feio que eu a importunara a cada compra e brincara que ela se superava em encontrar um mais horrível que o outro. O nó na minha garganta se tornava cada vez maior. Tirei do bolso o frasco de comprimidos e tomei dois de uma vez. Hoje eu precisaria se quisesse aguentar e não sucumbir ao desespero.

Arranquei as roupas molhadas e me enrolei numa manta que encontrei no seu closet. Mesmo depois de quase nove meses tudo ainda mantinha o seu cheiro... o seu perfume. As roupas sóbrias e, até mesmo diria feias, lado a lado milimetricamente arrumadas. Os sapatos confortáveis que ajudavam na sua jornada de horas em pé, como legista do Departamento de Medicina Legal da Cidade de New York, sempre tão limpos, jaziam também lado a lado. Tocava cada peça, cada objeto como se com isso eu pudesse sentir a sua pele. Uma caixa vermelha chamou a minha atenção e, quando a abri, não consegui mais segurar as lágrimas.

RED (em hiato)Onde histórias criam vida. Descubra agora