O Círculo

O Silêncio

O colégio era novo. Escola nova, cidade nova, casa nova. De certo modo família nova. Pelo vidro traseiro do carro se afastava o ontem, cada vez para mais longe enquanto o presente atravessava o para-brisa. 

— Como chama a escola?

— Deputado... — a mãe interrompeu o silêncio que sustentou toda a viagem para tentar lembrar — Deputado alguma coisa. — tinha ficado em silêncio quase o tempo todo nas últimas semanas e parecia querer continuar em silêncio. Tinha se refugiado no silêncio.

— Como é ver sua família desmoronar? — a filha perguntou baixo demais para a mãe ouvir.

O prédio cinzento de três andares surgiu por trás das casas mais próximas. Alunos começaram a aparecer nas calçadas com um uniforme também cinzento. A única coisa que conseguiu pensar foi “Adequado”.

— Te busco às cinco. — a mãe disse como despedida quando já saía do carro.

— Volto de ônibus. — a filha respondeu — Para aprender o caminho.

Fechou a porta e viu o carro partir sem mais uma palavra. O carro deixava uma perda para trás, mas descer do silêncio era um alívio. Ficou ainda um tempo olhando o a rua depois que o carro tinha sumido sem conseguir escolher entre a tristeza e o alívio.

— Irônico — teve que murmurar ao reparar no uniforme azul e amarelo da escola antiga que vestia. Tinha a roupa mais alegre da escola em tons de cinza.

Viu nos uniformes antes da fachada da escola, "Carlos Prestes" com capitulares que ocupavam metade das blusas, Deputado Luiz Carlos Prestes. Claro que CP para os íntimos. O portão dava para a grande figueira no fundo de um vão entre dois blocos gêmeos, três andares e pilotis aberto, coalhado de blusas cinzas. Queria acreditar que a blusa azul de debruns amarelos chamaria atenção, ou ao menos os cabelos muito crespos e volumosos, mas navegava no mar de cinza quase sonâmbula quando chegou a alguém com cara de funcionário.

— Nona B — disse, antes de perceber que falava quase como a mãe. — Por favor, onde é a nona B?

A servente sorriu e apontou para a escada mais próxima do prédio da esquerda. 

— As nonas são no segundo andar.

— Obrigada. — sorriu de volta para perceber assustada que era o primeiro sorriso do dia.

Os pares de lances de escadas funcionavam como portal dimensional. A algazarra se tornava murmurinho para virar zumbido e desaparecer no segundo par. O corredor deserto decorado com os desenhos do primário e cartazes do ginasial era de um silêncio sepulcral. Achou a sala com a placa “9ª B” no momento em que o uma sirene anunciava o início de um incêndio, ou do turno escolar, provavelmente do turno escolar, anunciando que o zumbido subiria a escada, se tonando murmurinho para explodir em algazarra, preenchendo cada espaço de silêncio e vazio que se alastrava pelos últimos meses.

Entrou com passos largos na sala, como fugindo da maré que escalava as escadas e pousou a mochila na primeira mesa da fila do meio da sala, não era alta o bastante para atrapalhar os de trás. Sentava sempre no fundo, não era baixa o bastante para isso ser um problema, mas sentar no fundo é falar, e o silêncio parecia entranhado na pele. Quando as primeiras figuras vestidas de cinza entraram na sala já estava sentada com sua blusa azul de debruns amarelos, pronta para responder as óbvias perguntas óbvias e se surpreender com a dificuldade disso, como se o  silêncio tivesse descido do carro e a acompanhasse escola adentro.

A professora chegou logo, Geografia, velha e perua. Não sabia da aluna nova, fez questão de uma apresentação de pé para toda a classe.

— Bom dia. Meu nome é Roberta. Vim para essa cidade porque meu pai foi preso.

O silêncio finalmente desgrudou da sua pele, do seu uniforme azul e se espalhou pela sala, tomou conta dos alunos e da professora perua, incapazes de falar por um momento. Podia até respirar melhor. Sorriu, pela segunda vez, mas pela primeira vez em semanas sorriu de verdade e sentou, livre do silêncio, para esperar a enxurrada de perguntas que se seguiria.